O bom humor e uma sinceridade cortante marcaram a fase de escritora de Rita Lee, cantora que morreu na noite desta segunda, 8, aos 75 anos. Em suas autobiografias, não escondeu temas delicados, como quando narrou a violência sexual, que sofreu com 6 anos, quando um homem colocou uma chave de fenda em seu sexo. Também detalhou a fase em que lutou contra o câncer, no livro que está por sair. Rita também escreveu para crianças, livros em que defendia a ecologia e o cuidado com os animais.
As revelações mais impressionantes surgiram em novembro de 2016, quando lançou <i>Rita Lee – Uma Autobiografia</i> (Globo Livros). Ali, além de lembrar quando despontou, aos 19 anos, no meio musical com Os Mutantes, passando pela consagração nacional com a banda Tutti Frutti (1973) até a fama internacional já ao lado do marido Roberto de Carvalho, ela detalhou a infância e a juventude vividas em São Paulo.
O fato mais chocante foi justamente o abuso sexual, quando um homem chamado para fazer um conserto em uma máquina de costura aproveitou o momento de solidão para colocar uma chave de fenda em seu sexo, fugindo em seguida. Rita tinha apenas 6 anos. "Na medida em que escrevia, percebi que, ao mesmo tempo em que exorcizava os traumas, eu também dava gargalhada das minhas patetices existenciais. Essa bio foi uma autoterapia curadora", disse ela ao <b>Estadão</b>.
O texto de Rita traz a mesma dicção de suas letras e entrevistas, um humor cortante que não encobre uma visão clara e precisa do seu cotidiano. Esse tom brincalhão é um alívio até para relatar fatos incômodos como o aborto que sofreu e as internações por droga.
Nem mesmo quando se lembra da expulsão das duas bandas que ajudou a criar, Os Mutantes (Mutas, como ela chama) e o Tutti Frutti. "Arnaldo era o irmão que eu gostaria de ter tido", escreveu Rita sobre Arnaldo Baptista. "Aquele que te ensina a trocar pneu, dirigir moto, empresta roupa para você se disfarçar de menino e te leva no banheiro masculino." Ele também considerou "muito rocknroll" o incidente com a chave de fenda.
Naquela autobiografia, Rita mostrou como demarcou território com Elis Regina ("Comigo era só dengo, afinal, eu não representava a menor ameaça à coroa de melhor cantora"), além da amizade com Gilberto Gil ("inteligente"), Milton Nascimento ("meigo"), Wilson Simonal ("audacioso"). Ela só não comentou o incidente ocorrido em Aracaju, em 2012, quando foi presa por desacato a policiais, pois o processo ainda estava em andamento.
Quando imaginava ter relatado todos os fatos importantes de sua trajetória, Rita foi surpreendida pelo câncer de pulmão, batalha que travou até seu último dia. O período inspirou <i>Outra Autobiografia</i>, previsto para ser lançado no dia 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia. O livro aborda os últimos três anos de sua vida, da pandemia ao diagnóstico de câncer.
Rita já havia se exercitado na escrita quando lançou <i>Dr Alex </i>em 1986, seguido de <i>Dr. Alex na Amazôni</i>a (1990). Alex é um cientista que, transformado em um ratinho, inicia uma saga convidando as crianças a defenderem o meio ambiente. Como o tema se tornou ainda mais urgente nos últimos anos, Rita resolveu revisitar os textos com novas edições de <i>Dr. Alex e os Reis de Angra</i> (1988) e <i>Dr. Alex e o Phantom</i>, novo título para <i>Dr. Alex e o Oráculo de Quartz</i>, que saiu em 1992.
"A intenção é contar para as crianças do desrespeito que acontece atualmente a todas as formas de vida, pois quem herdará a Mãe Terra serão elas. Os reinos mineral, vegetal e animal estão em perigo de verdade. Quanto antes a criançada ficar antenada a essas tragédias ambientais, melhor. Mostre a elas o fogo destruindo milhares de árvores; conte que estão aniquilando indígenas e sua rica cultura; mostre que animais, que sentem dor e são seres vivos como nós, são tratados como coisas. Sim, é desagradável, mas as crianças de hoje devem ser preparadas para aprender o que não se deve fazer com a natureza", disse ela ao <b>Estadão</b>.