Os olhos de Roberto Carlos param sobre uma foto e ficam lá por um tempo. Cinco, dez, quinze minutos. Meia hora, uma hora. Quando não consegue identificar o que o incomoda, decide tomar a decisão depois. E depois, faz o mesmo. Analisa os detalhes em silêncio tentando puxar qualquer fio que possa trazer mais memórias.
A tortura se prolonga por dias até que Roberto entende o que o incomoda tanto.
Ao fundo da imagem que o mostra sentado em um navio existe uma corda. Corda lembra forca, forca lembra morte, e a simples lembrança da palavra morte é algo que pode angustiá-lo por toda a vida.
A foto vai para o livro assim mesmo, como vão várias outras avaliadas por uma lógica devastadora: Roberto Carlos é vencido pelo cansaço de uma investigação visual aparentemente sem propósito que seria eterna se não fosse freada pelas limitações físicas de um ser humano. Quando não aguenta mais olhar para a mesma foto, ele a abandona. E o material entra no livro.
Assim, passaram-se seis anos desde que o produtor Carlos Ribeiro, da Toriba Editora, levou ao cantor a ideia de colocar suas melhores imagens em um livro de luxo. Sem saber exatamente o que estava fazendo, Roberto escrevia indiretamente uma autobiografia escolhendo imagens que poderiam falar tanto quanto as palavras da biografia que ele um dia renegou.
O livro Roberto Carlos saiu primeiro em abril, em versão collectors book, a R$ 4,5 mil. Agora, o projeto é redesenhado no formato livro de mesa para se tornar mais acessível, R$ 249. “Ainda penso que poderia chegar a R$ 80 se for um pouco menor”, diz Ribeiro. Se contabilizasse cada obstáculo superado pelo editor e pelo próprio Roberto para que o projeto existisse, o preço chegaria à estratosfera. “Essas escolhas estão sendo um exercício de superação para mim”, confessou Roberto ao produtor enquanto fazia as escolhas. “Só consigo liberar algo quando não aguento mais olhar para ele”, explicou. Apesar de não trazer sua assinatura, a edição é do cantor.
Carlos Ribeiro chegou para a primeira reunião advertido, principalmente, sobre o que não deveria fazer. Quando entrou no estúdio de Roberto no bairro da Urca, no Rio, onde também fica sua casa, a lista já estava decorada: nada de palavras negativas como “azar”, nada de mencionar o número 13, nada de usar roupas nas cores preto ou marrom, nada de sentar com as pernas cruzadas apoiando as mãos sobre um dos pés e nada de colocar objetos no chão, como páginas soltas, durante a conversa. “Senti que era um teste. Ele ficava me observando”, lembra. Certo dia, o produtor esqueceu um dos mandamentos e chegou com uma mochila decorada com detalhes em marrom. Avisado, teve de deixá-la em outro cômodo. Ao perceber que nada do que se dizia naquele estúdio saía na imprensa, Roberto passou a confiar no produtor. E fez o projeto seguir.
A primeira grande questão foram as palavras. “Se tiver texto, o livro vai levar uns dez anos para ser aprovado”, avisou o empresário do cantor, Dody Sirena. Então, para tornar o projeto um sonho menos distante, Ribeiro decidiu por uma publicação sem texto de abertura nem legenda nas fotos. O material visual é rico, colhido em todos os grandes arquivos do País e em acervos particulares, mas perde em informação por não explicar detalhes de cenas importantes. “Fiquei sem saber o que fazer”, diz Ribeiro.
Depois de tomar um porre com os amigos em um bar do Itaim, ele pensou em resolver a questão usando trechos das músicas gravadas pelo cantor. “Ele é o personagem central de suas canções o tempo todo.” Ao levar a nova proposta, respirou aliviado quando ouviu Roberto dizer: “Ah, agora tudo bem”. As frases daquelas letras, afinal, tinham palavras sobre as quais o cantor já havia pensado por anos.
Uma foto fez Roberto Carlos chorar. A imagem o mostra no palco do programa Hoje é Dia de Rock, que Jair de Taumaturgo apresentou na TV Rio, canal 13, entre 1961 e 1965. “Poxa, onde você achou isso?”, perguntou Roberto, dizendo ser aquele o primeiro programa de auditório do qual havia participado. Uma imagem que ele mesmo desconhecia. A história é rica, mas a legenda é sucinta: “Jair de Taumaturgo – Programa Hoje é Dia de Rock”.
A reprodução de um documento também causou espanto. São duas páginas de uma agenda que marcam os dias 3 e 4 de fevereiro de 1966 e trazem os versos de Namoradinha de um Amigo Meu escritos a mão. Ao se deparar com ela, Roberto fechou a expressão e levou um bom tempo para emitir qualquer sinal, deixando Ribeiro em pânico. “Foram três ou quatro minutos de um silêncio assustador.”
Roberto então afirmou, ainda sisudo: “É a minha letra”. E quis saber: “Onde você arrumou isso?”. Ribeiro respondeu: “Um jornalista não costuma revelar fontes, mas já que estamos aqui em uma monarquia… Eu consegui essa com a Verinha”. Verinha é Vera Marsichiello, presidente do fã-clube Um Milhão de Amigos, uma das fontes mais consultadas sobre o cantor. “Ao ouvir isso, Roberto quase se matou de rir”, lembra Ribeiro.
As manias de Roberto Carlos vetaram trechos da música Quero Que Vá Tudo Pro Inferno por questões psicológicas que continuam mal resolvidas com a palavra “inferno”, mas deixaram passar a reprodução da capa do disco Louco por Você, seu primeiro LP, de 1961, que se tornou uma raridade de R$ 3 mil nos sebos do País por ter sido renegado e retirado das lojas a pedido do próprio cantor, que o considera de baixa qualidade.
As três mulheres de Roberto também estão lá: Nice, com quem esteve casado entre 1968 e 1979; a atriz Myriam Rios, com quem viveu na sequência por 11 anos; e o último e mais marcante amor de sua vida, Maria Rita, que morreu de câncer em dezembro de 1999. “As fotos de Maria Rita foram e voltaram muitas vezes. Não há uma imagem dela em qualquer arquivo do País que não tenhamos analisado”, diz Ribeiro.
As imagens ganham cor e perdem graça com o passar do tempo, comprovando um engessamento de Roberto tanto diante do microfone quanto fora dele. O rei se encastela na vida e no palco. Se antes aparecia curvado e com o braço estendido para apresentar seu amigo Erasmo Carlos no Programa Jovem Guarda, surgia sobre um dos braços do Cristo Redentor em cena do filme Em Ritmo de Aventura ou sorria ao lado de um de seus carrões nos anos 1960, ele vira um totem azul e branco nos anos 1990. Uma imagem tão sedimentada que o próprio Roberto estranha quando se vê fora dela: “Puxa, como eu gostava de usar preto nessa época”, comentou incomodado ao se ver nos anos 1960.
As últimas páginas trazem a discografia do cantor e, mais uma vez, as imagens falam por si. Das 60 capas de discos lançados desde 1961 (os compactos começaram em 1959), 28 usam as cores azul ou branco. E a música O Careta, que abre o lado B do álbum de 1987, fica fora da listagem não por outra mania, mas por uma indigestão legal. No final dos anos 1990, o compositor Sebastião Braga ganhou do cantor um processo acusando-o de plágio ao usar sua canção Loucuras de Amor para criar O Careta. Sebastião morreu em 2005 e Roberto apagou a música do disco, reescrevendo a história sem usar nenhuma palavra. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.