Quando Rodrigo Campos pega a caneta e o violão para compor sobre algum lugar, não espere canções que resultem em uma espécie de cartografia exata, literal e documental. Aos 38 anos, o compositor paulista, que já traçara seus mapas subjetivos e imaginários para o bairro de São Mateus, na zona leste de São Paulo (no disco São Mateus Não É Um Lugar Assim Tão Longe, de 2009), e para a Bahia (em Bahia Fantástica, de 2012), apresenta agora, no álbum Conversas com Toshiro (Natura Musical/YB Music), sua visão mitológica e abstrata sobre o Japão. E (por que não?) sobre si mesmo.
Com lançamento marcado para esta sexta, 25, o disco começou a surgir para Rodrigo em 2012. Logo após lançar Bahia Fantástica, o músico compôs duas canções, Katsumi e Toshiro Vingança, inspiradas em nomes de origem japonesa. Sem ainda pensar em um novo álbum, seguiu escrevendo sobre outros temas e para outros projetos, como o Passo Torto (grupo formado por ele, Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Marcelo Cabral), com quem ao lado de Ná Ozzetti lançou recentemente o disco Thiago França.
Porém, sempre que voltava aos nomes de origem japonesa, Rodrigo se interessava pelo resultado das composições. Assim, investiu naquele caminho e foi levado a um terreno que ele domina há tempos: o da criação de personagens para contar histórias em forma de canções.
E que tipos e figuras são essas? Partindo dos nomes de origem japonesa e de muitas referências pop da cultura oriental, principalmente do meio audiovisual, Rodrigo deu vida a uma série de personagens. Entre eles, Takeshi e Asayo, na faixa que abre o disco, com o nome do protagonista inspirado no cineasta Takeshi Kitano; Toshiro Reverso e Toshiro Vingança, em que o compositor cria diferentes facetas e destinos em histórias imagéticas e cinematográficas para o personagem que remete ao ator-samurai Toshiro Mifune; Ozu, na existencial Abraço de Ozu, em menção ao cineasta Yasujiro Ozu (“Dói você, dói em mim/Dói saber, não saber/Dói viver/Dó poder ser feliz enfim”); Chihiro, lembrando a animação A Viagem de Chihiro, de Hayao Miyasaki; e Wong Kar-Wai, que amplia o leque de referências para além do Japão, ao citar o cineasta chinês – e tratá-lo na letra como irmão do personagem bíblico Jonas antes deste morar na baleia.
“O disco tem essa relação com o Oriente, com o Japão, mas de uma maneira muito mitológica, ele é mais uma metáfora do inconsciente do que uma metáfora do próprio Japão, sabe? No disco, todos esses personagens faziam um mapa do inconsciente, talvez do meu próprio inconsciente. O Toshiro, eu elegi esse personagem para ser o próprio inconsciente no disco, para ser uma espécie de orixá que rege o inconsciente”, comenta Rodrigo. “Na verdade, são conversas comigo mesmo. Parto de uma mitologia para criar reflexões das minhas próprias questões e inquietações”, completa o compositor.
Assim como ocorrera nos discos anteriores, “Rodrigo não recorre a elementos documentais nem à vivência geográfica para construir sua obra, ele segue um mapa abstrato e subjetivo que investiga impressões e memórias não vividas”, como define Kiko Dinucci no texto de apresentação do álbum.
Em relação à vivência geográfica, Rodrigo esteve uma vez no Japão, em turnê com a cantora Verônica Ferriani, mas o fato de ter conhecido de perto o país asiático pouco influenciou no disco, já que quase todas as faixas já tinham sido feitas anteriormente. A passagem pelo território japonês, porém, rendeu a música Funatsu, já que Rodrigo emprestou o nome do manager da turnê de Verônica para criar o personagem fantástico da canção, um rei covarde, “albino da tromba amarela”, de “cabeça vermelha jorrando confete”, “tranquilo de sexta a domingo, comendo um menino de segunda à tarde”.
“Acho que o Japão é como se fosse uma espécie de fantasia que você veste, é como se eu tivesse posto uma fantasia de samurai, por exemplo, e ficasse observando como eu me comporto com essa fantasia, não interessa muito o personagem de fato, interessa o que isso provoca em mim, o que o Japão provoca, o que a Bahia (no outro disco) provoca em mim. Mais do que tentar ser um documentarista”, explica Rodrigo. “Se fosse comparar com um documentário, seriam como os que o Jean Rouch fez na África, em que os personagens inventavam histórias para eles mesmos. Acaba sendo uma documentação psicológica, não uma documentação do lugar em si ou dos personagens”, completa o músico.
Oníricas
O álbum foi dividido em duas partes por sugestão de Romulo Fróes, que assina a direção artística do disco. A primeira, batizada de “Amor e Brutalidade”, como o próprio nome sugere, traz canções com temáticas que envolvem sexo, desejo e violência e contém as músicas Takeshi e Asayo, Wong Kar-Wai, Katsumi, Funatsu e Dois Sozinhos. Esta última, um dos destaques do álbum, com música de Rodrigo e letra de Nuno Ramos, traz versos como: “Minha carne é pra tua faca/Só eu sei tua cor por dentro/É o vermelho de um céu cinzento/Te cortar num mangá”. O tema, sugerido a Nuno por Rodrigo, foi inspirado no Ero Guro de Suehiro Maruo, em que os personagens se dilaceram com espadas enquanto fazem sexo.
Em termos de sonoridade, esse conjunto de canções remete ao soul e ao groove, sem deixar de ser extremamente brasileiro. A banda é formada por Rodrigo Campos (voz e guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Curumin (bateria), Dustan Gallas (rhodes e hammond), Thiago França (sax soprano, sax barítono e flauta), Juçara Marçal e Ná Ozzetti, responsáveis por uma teia de vozes bem arranjada, que vai além de ser apenas um coro, e essencial para o resultado do disco.
Já a segunda parte do álbum, “Paisagem na Neblina”, conta com arranjos orquestrais feitos por Marcos Paiva e apresenta atmosfera e letras mais oníricas e existenciais. No grupo, canções como Abraço de Ozu, Toshiro Reverso, Toshiro Vingança, Paisagem na Neblina (já gravada no disco A Carne das Canções, de Swami Júnior e Marcelo Pretto, de 2014), O Velho Amarelo (interpretado por Juçara Marçal em Encarnado, de 2014), além dos sambas Chihiro e Dono da Bateria, de Romulo Fróes e Nuno Ramos, que encerra o disco em gravação apenas com voz e violão de Rodrigo.
Há ainda Mar do Japão, em que o compositor, com muita categoria, imagina o que mora sob as águas do mar japonês após o tsunami de 2011 e a consequente radiação da usina nuclear de Fukushima. “Outro samba, Mar do Japão, leva às últimas consequências a abstração poética/geográfica, afirmando o que segundo ele habita nesse mar: Água doce, pedra inteira, peixe morto, carro antigo, vidro, estrela. Esse mar poderia ser o da Bahia, ou poderia existir em São Mateus”, descreve Dinucci no texto de apresentação do álbum.
Conversas com Toshiro, que desponta como forte concorrente a um dos melhores discos brasileiros do ano, tem arte gráfica assinada por Rodrigo Sommer e será lançado em novembro numa edição em vinil duplo pelo selo Goma Gringa. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.