Maria Valéria Rezende já tinha uma consolidada carreira literária quando foi “descoberta” no ano passado ao ganhar o Jabuti de Livro do Ano por Quarenta Dias. Virou celebridade e não gostou quando disseram, por exemplo, que uma veterana tinha desbancado Chico Buarque. “Ele só é um ano mais novo do que eu. Quiseram dizer que uma velhota anônima tinha ganhado?”, esbraveja. Ou que tivessem se concentrado na informação de que é freira – como se ela devesse estar presa num convento rezando, e não escrevendo e vencendo “medalhões” com um livro que retrata personagens à margem da sociedade.
Nesta quinta, 25, ela apresenta seu novo romance, com personagens ainda mais invisíveis. Outros Cantos narra a volta de uma mulher ao sertão 40 anos depois de sua primeira viagem àquela terra esquecida. No ônibus, lembranças do passado voltam em flashes e Maria, a narradora, nos transporta para Olho dÁgua. Lá, conhecemos seus personagens, sua realidade. O horror apaziguado por pequenos gestos de solidariedade. Maria, professora do Mobral, está lá para iniciar sua missão: “preparar a chegada dos outros para fazer a revolução a partir do povo”.
Valéria explica que não teve a pretensão de dar conta do contexto histórico – o livro é situado na ditadura militar. “Eu quis fazer algo mais lírico, mostrar como se sentia uma pessoa jovem que se comprometia com a resistência à opressão, à ditadura e, mais que isso, com a transformação do Brasil, que nunca tinha sido justo, em um país justo.”
Isso tudo ela viu de perto. Viveu no campo no início dos anos 1970 e depois por mais de uma década entre 1976 e 1988. E viu situações similares em outros lugares do mundo. Sempre em serviço missionário. Mas, apesar da semelhança entre o enredo e a trajetória da autora, aos que forem procurar vestígios da Maria Valéria que viveu no sertão, ela adverte: “Não sou eu. Não é minha biografia nem o meu temperamento. Os percursos, sim, são meus. Emprestados, estilizados, metaforizados, embelezados”. Ela justifica dizendo que não sabe escrever sobre o que não viu. “Isso de criar alguma coisa que está na minha cabeça só com a linguagem eu não entendo como é. Sei inventar histórias usando a matéria-prima que eu fui absorvendo ao longo da minha vida, com meus cinco sentidos e com as leituras”, conta.
Seu romance presta, então, homenagem aos milhares de missionários anônimos que se embrenharam pelo Brasil a partir de 1969, por acreditar que a resistência e a transformação só podiam vir de dentro para fora, de baixo para cima. “Fomos conscientizar o povo e ajudá-lo a se organizar com uma metodologia não doutrinária. Aprendemos sua vida para, juntos, ajudá-los a refletir sobre que situação era aquela. Será que Deus queria mesmo que as pessoas sofressem nesse mundo para serem felizes no outro, no céu?”
A luta teve resultado, ela acredita. “A garotada sem futuro que conheci, filhos de analfabetos, está formada. São doutores. E hoje, nenhuma família pobre do Nordeste duvida que seu filho pode, sim, ir para a universidade. É uma alegria. Foi um avanço e não há crise que reverta.” E vai além: “O nordestino baixinho de cabeça chata do estereótipo morreu, acabou. A meninada está 20, 30 centímetros mais alta que seus pais. Os sistemas cerebral, motor e nervoso se desenvolveram. Haja a crise que houver, eles não vão perder isso. A qualidade antropológica do nosso povo avançou e isso é irreversível. Quando as pessoas começam a escrever muita besteira no Facebook, digo: venha cá que vou te mostrar”, conclui a escritora que vive em João Pessoa.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.