Variedades

Romance e política nos anos de chumbo

Uma mistura bem balanceada de romance, política e ação fizeram do primeiro capítulo de Os Dias Eram Assim um coquetel dos mais saborosos. A nova novela da Rede Globo (supersérie, como agora se chamam nesse horário mais tardio) parece promissora. Em especial porque a trama se situa em época muito conturbada do País, os chamados “anos de chumbo”, fase mais violenta da ditadura brasileira (1964-1985) quando grupos de esquerda e governo se enfrentavam em luta desigual.

O dia escolhido para o primeiro capítulo não poderia ser mais significativo – 21 de junho de 1970, quando Brasil e Itália se enfrentaram na final da Copa do Mundo no México e disputaram, além do título em si, a posse definitiva da Taça Jules Rimet. As duas seleções já tinham dois títulos e quem ganhasse o terceiro ficaria de vez com a Copa. No Brasil, a disputa futebolística ganhava significado especial e alta ressonância simbólica. O governo do ditador Emílio Garrastazu Médici tentaria tirar proveito do sucesso da seleção em benefício próprio. As esquerdas denunciavam essa utilização política do futebol e pregavam que se torcesse contra o escrete. Mas quem teria coragem de torcer contra um time formado por Gerson, Pelé, Tostão, Clodoaldo, Jairzinho e outros craques, e que jogava o fino da bola?

Toda essa divisão de ideias mostrava um país dilacerado, que tentava se mostrar grande e civilizado aos olhos do exterior, mas no qual opositores eram torturados e assassinados nas prisões.
A adrenalina dessa época muito especial terá de ser captada pela novela. Esse será um grande desafio. A estratégia para alcançar esse resultado funcionou, ao menos nesse primeiro capítulo. O jogo final da Copa como centro das atenções. Ao mesmo tempo, toda uma série de conflitos, atrações e repulsões se armando para fiar a teia do folhetim. Um patrão autoritário e conivente com o regime, Arnaldo (Antonio Calloni), sua filha rebelde, Alice (Sophie Charlotte) prometida a um noivo insosso e interesseiro, Vitor (Daniel de Oliveira). Um jovem médico idealista, Renato (Renato Góes), seu irmão, o estudante Gustavo (Gabriel Leone) e um ativista da luta armada, Túlio (Caio Blat), que “cai” na primeira ação da história e é torturado pela polícia.

A direção é sóbria e enérgica, e a fotografia, a cargo do mestre Walter Carvalho, aposta na simplicidade e no realismo. Convence e emociona. Ajuda muito nesse processo a inserção de imagens documentais em preto e branco na trama. A trilha sonora, feita de Construção, Sangue Latino e outros sucessos da MPB, também ajuda.

Logo no início é apresentada uma espécie de clipe resumo de como o País chegou àquela data. Imagens rápidas de Jango, o presidente deposto, comícios febris, passeatas, o golpe, generais fardados, soldados e tanques na rua espancando civis. É a ditadura se impondo. E ditadura é sinônimo de violência.

Ao lado desse desafio, há outro talvez ainda mais difícil: ambientar a história de amor e os lances de folhetim a um quadro histórico que não pode ser deformado até mesmo por uma questão ética. É claro que o espectador da novela liga a TV à espera de um romance caliente entre a mocinha rebelde e o médico idealista.

Torce pelos bons e odeia os vilões. As coincidências folhetinescas também fazem parte da linguagem consagrada pela TV. O convívio dos personagens positivos com os malvados faz parte do jogo dramatúrgico – afinal, trata-se de uma obra de ficção. Enredo que poderia, desse jeito mesmo, se passar em qualquer época, e até hoje em dia, com nossa pobre realidade atual de delatores e delatados.

Mas, se a escolha foi pelos anos de ditadura, quando a febre política subiu ao seu grau máximo, e quando tantos perderam a vida, há que se assumir a responsabilidade por essa opção. Ao menos para deixar claro o altíssimo preço que paga um país quando desiste da democracia, e investe no autoritarismo, como alguns defendem ainda hoje.

Os Dias Eram Assim começou bem. Resta ver se mantém o pique inicial, com tantos desafios que tem a enfrentar para merecer o bonito título escolhido para a série, que implica verdade e fidelidade a uma página infeliz da nossa História.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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