Mundo das Palavras

Rubinato e outros personagens de São Paulo

Quando Carolina chegou a São Paulo, em 1937, tinha 23 anos. Vinha de uma comunidade rural de Minas Gerais. Seus pais trabalhavam lá como meeiros – denominação dada aos lavradores sem terras, por isto, obrigados a entregar a metade do que produzem ao dono dos terrenos cultivados por eles. Para piorar a situação, seu pai verdadeiro não era o marido de sua mãe. Que tinha ainda outro filho ilegítimo, e, por isto, foi expulsa da Igreja Católica onde rezava, pelo próprio vigário.Sem parentes em São Paulo que pudessem lhe oferecer abrigo, Carolina foi juntando materiais abandonadosnas ruas, como pedaços de madeiras, papelões e latas. E com eles ergueu um barraco improvisado numa favela. Como precisava igualmente de alimentos, transformou-se em catadora de papel. Assim pôde dispor de alguns recursospara comprá-los.
 
Quando Edmundo chegou a São Paulo, em 1946, tinha 21 anos. Vinha de uma tentativa de morar no Rio de Janeiro, fracassada por causa das raízes que o prendiam à cidade onde nasceu. Mas São Paulo já o havia maltratado muito, antes. A doençaque lhe deformou as mãosera controlada com extrema dureza pela prefeitura da cidade. Devido àsua hanseníase, Edmundo tinha sido preso pelo Departamento de Profilaxia da Lepra e ficara confinado compulsoriamente durante boa parte de sua adolescência, em asilos-colônias do interior do Estado. Do último, ele conseguiu fugir. 
 
Quando João chegou a São Paulo, em 1924, tinha só 14 anos. Vinha de Santo André, e, lá,fora aprendiz de tecelão, pintor, encanador, serralheiro e garçom. Num relativo progresso, pois,ainda criança, em Jundiaí, havia varrido chãos de fábrica e entregue marmitas, para ajudar seus pais, lavradores imigrantes italianos, instalados em Tietê.
 
Instalados em São Paulo, Carolina, Edmundo e João foram afetados em seus destinos pelas grandes transformações da cidade na primeira metade do século passado. Tão grandes a ponto de dar a ela um título exibido com orgulho por seus administradores públicos, o de “cidade que mais cresce no mundo”. Por vias tortuosas, estas transformações fizeramo mundo de cada um dos três também crescer.
 
O de Carolina. Entre os papéis abandonados que ela coletava, havia descartes da produção da imprensa escrita em expansão na cidade. Encantada com aqueles jornais e revistas, ela passou a guardá-los para ler. O que gerou nela vontade de separar para si também folhas de papel em branco nas quais pudesse escrever um diário. 
 
Se o público de leitores estava se expandindo junto com a cidade, maior expansão tinhao público das rádios. 
 
Edmundo e João. Aos dois chegaram bons frutos da expansão do número de rádio-ouvintes. Para o primeiro porque, na devastação corporal da hanseníase,ele tinha conseguido salvar os movimentos de alguns dedos. E com estes dedos, aos 16 anos, tinha escrito à máquina o conto “Ninguém entende Wiu-Li”. O texto agradou os editores do “A Folha da Manhã” e o jornal o publicou. O êxito estimulou Edmundo a acumular experiências nas tentativas de se tornar escritor. O que lhe permitiu obter emprego de redator de programas da Rádio Excelsior, aos 22 anos. 
 
João. Sem escolaridade formal, ele senti, no entanto, que tinha talento suficiente para iniciar tanta uma carreira de ator como outra, de compositor, no maravilhoso universo da radiofonia. Nas primeiras tentativas feitas através de concursos de calouros, ele não se deu bem.  Mas, com 23 anos, ganhou um concurso na Rádio Cruzeiro do Sul de São Paulo, cantando Filosofia, a música hoje clássica de Noel Rosa.
 
Depois os acontecimentos se precipitaram nas biografias dos três.  Carolina conseguiu reproduzir num diário pessoal o cotidiano sofrido de uma favelada. O jornalista Audálio Dantas descobriu o diário, e, promoveu a publicação dele com o título de “Quarto de despejo”. Era como Carolina Maria de Jesus chamava a favela. Nelas, segundo Carolina, a cidade grande despejava seu lixo.O livro se tornou best-seller no Brasil e no Exterior.
 
Edmundo. Seu sobrenome verdadeiro era Nonato. Mas, quando a televisão chegou ao Brasil, ele se firmara profissionalmente com o pseudônimo que lhe havia protegido da vigilância impiedosa do Departamento de Saúde Pública: Marcos Rey. Ao longo dos anos seguintes, Marcos escreveuroteiros de programas infantis (como Vila Sésamo e Sítio do Picapau Amarelo), telenovelas(como Partidas dobradas) e mini-séries  (como O homem que salvou Van Gogh do suicídio). Seu feito maior, porém, foi a projeção como escritor de dezenas de obras de literatura tanto infantil como adulta. Entre as quais,o romance Memórias de Um Gigolô e o livro de contos “O enterro da cafetina”. Este conjunto de obras deu a ele o Prêmio Juca Pato, e, duas vezes, o Prêmio Jabuti. Com 36 anos, Marcos era presidente da União Brasileira dos Escritores. 
 
João. A atuação nas rádios não impulsionoumenos a carreira de João Rubinato.  Aospoucos, foramse abrindo espaços para que ele utilizasse aquela linguagem original e expressiva composta por uma mistura de expressões italianas com caipiras, que ele aprendera no interior do Estado, dentro do ambiente em que viveram seus pais. Com esta linguagem e o pseudonimo de Adoniran Barbosa, ele criou um personagem radiofônico humorístico de sucesso, o Charutinho, e letras de músicas, hoje, definitivamente incorporadas à melhor cultura popular brasileira. Como Trem das Onze, espécie de hino não oficial de São Paulo.Obigode, o chapéu e o cachecol característicos da imagem que deixou consagrada soterrou de vez o antigo João Rubinatohoje só encontrável em fotos raras, como a que ilustraeste texto.

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