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Ruffato analisa a mania brasileira de dar marcha à ré

Em seu novo romance, O Antigo Futuro, Luiz Ruffato volta a atenção para um personagem que habita há muito sua prosa: o trabalhador. Nele, apresenta a trajetória dos Bortolettos através de quatro gerações, cuja tônica é a busca pela sobrevivência ante uma realidade hostil, embora familiar.

Vencedor de prêmios como o APCA, Jabuti, Machado de Assis, Casa de Las Américas e Herman Hesse, Ruffato se destaca pelo distanciamento de um heroísmo fácil. Avesso às panfletárias histórias de superação, aproxima-se do que há de mais comum: o brasileiro mediano, trabalhador de chão de fábrica, de vida precária e violentado simbolicamente pela sub-humanidade – mesmo que não o perceba. Como os livros anteriores, O Antigo Futuro perscruta histórias dessas pessoas.

Em sua obra, não há "dons" especiais, tomadas de consciência quanto a uma condição social a partir de uma espécie de magia, muitas vezes traduzida em superação ou força de vontade. Sem dádivas, preocupa-se com o impacto dessa condição na constituição de uma personalidade e a sua forma final. Em Ruffato, a aposta no Brasil como país do futuro é para poucos, para quem tem pouco, senão nada, a perder.

Dividido em quatro partes, a primeira é focada em Alex e sua emigração para os Estados Unidos. Ali, busca trabalhos subvalorizados para economizar e ajudar a família no Brasil. Posteriormente, temos a história de seu pai, Dagoberto, que abandonou Cataguases, interior de Minas Gerais, para construir sofridamente uma vida em São Paulo, onde se estabelece. A terceira parte é a história de Aléssio, filho do imigrante italiano Abramo, protagonista da quarta parte. Os dois últimos, respectivamente, são avô e bisavô de Alex.

O artifício narrativo de Ruffato joga com o leitor. Ao apresentar, antes de tudo, as condições de vida dos personagens e suas ações, exige uma apreciação fundada no repertório de quem está lendo. É como se nos entregasse o que há de mais comum, aquilo com o que lidamos todos os dias, para, depois, puxar um fio em direção aos pormenores de cada um na história, gerando um novelo de interpretação a partir do que é colocado com as experiências dos leitores.

Desse modo, é visível como a emigração de um trabalhador para os EUA não é apenas uma questão de "vencer na vida" – bem como a ida de Abramo para o Brasil, a de Aléssio para Cataguases e a de Dagoberto para São Paulo. Se antes atraía, hoje, expulsa. A realidade brasileira é um torvelinho no qual os personagens são testados em seus limites de sobrevivência.

Ruffato incomoda – um mal necessário. Apresenta um Brasil de futuro cansado, tantas vezes anunciado, sem nunca chegar. A caminhada de Alex o leva a Abramo, seu bisavô italiano que emigra pela sobrevivência no começo do século 20. A realidade brasileira evidencia como tanto se corre para se chegar a um passado insistente.

<b>Você se considera um trabalhador?
</b>
Sim. E é curioso porque sempre vi os colegas dizendo não. Era quase vergonhoso dizer que ganhava dinheiro com literatura. Literatura era uma coisa superior. Muito curioso o que há por trás desse discurso. É algo assim: "Eu sou superior a você; enquanto você trabalha e sua para ganhar o seu salário, eu não. Tenho uma coisa elevada, divina. Eu crio". Há escritores que vivem de literatura e não são bons, há escritores que não vivem de literatura e são ruins, há escritores que vivem de literatura e são bons e há escritores que não vivem de literatura e são bons. Ou seja, não é isso que define a boa ou má qualidade da literatura. O que define é o trabalho em si.

<b>Quando você começou a escrever O Antigo Futuro?
</b>
Meus livros sempre nascem de uma pergunta e são políticos. Surgem de questões coletivas, não pessoais. Aquela coisa que no Brasil ouvimos muito dizer: "Não gosto de política, não tem a menor importância". Mas não sabem como isso interfere no cotidiano. Logo, todos os meus livros propõem uma reflexão a respeito disso, uma reflexão ancorada na realidade das discussões do momento. O Antigo Futuro é uma tentativa de propor essa reflexão.

<b>Gostaria que você falasse sobre a técnica utilizada neste livro, em que você inicia com a atualidade para, enfim, chegar ao passado, construindo uma lógica narrativa.
</b>
Para cada livro utilizo uma técnica diferente. Não há livro repetido. É intencional. Eu me coloco no lugar de desconforto, em uma tentativa de, a partir da forma, mostrar a complexidade de nossa sociedade, porque a sociedade brasileira não é fácil de se compreender. No caso de O Antigo Futuro, tentei estabelecer um diagnóstico a partir da seguinte questão: no Brasil o passado nunca passa. Tentei mostrar como o nosso passado é determinado pelo presente que, por sua vez, determina o futuro. As coisas não se resolvem.

<b>Qual o ponto em comum entre os principais personagens de seu romance?
</b>
É a questão do pertencimento ou não pertencimento. Quando o Abramo vai para o Brasil, está fugindo da fome. Não só ele, os alemães, os japoneses que emigraram para o Brasil não fizeram isso por querer. Eles o fizeram pela impossibilidade de continuar vivendo nesses lugares. Há a necessidade de sobreviver a uma realidade hostil que empurra os personagens para fora. Acho que a questão do pertencimento ou não pertencimento é fundamental para que se compreendam todos os meus livros.

<b>Isso é importante para compreendermos também as personagens femininas, como Giza, Elba, Ema, Constança, entre outras. Queria que você falasse um pouco sobre isso.
</b>
Acho que é impossível discutir questões ligadas ao papel de cada um na sociedade sem pensar onde estão situadas. As personagens femininas de O Antigo Futuro aparentam fragilidade. Contudo, acho que são muito fortes, ainda que de outra maneira. Fala-se muito de um machismo ativo e não pensamos em um machismo passivo. Temos de olhar como que a sociedade como um todo é fundamental para a opressão. E não temos de olhar apenas para as mulheres, mas para as crianças também. Elas sempre são vistas de uma maneira secundária nas relações. O olhar para as personagens femininas deve partir de um ponto de vista coletivo. Um exemplo é Ema, que para de falar por conta da opressão. Não é uma determinação do marido, mas, sim, do governo. Essas coisas são muito mais complexas e sutis do que parecem. A complexidade dessas questões muitas vezes não aparece ao serem vistas de um lugar equivocado. A literatura contribui ao oferecer um outro lugar para além daqueles de contemplação e reflexão.

<b>Quem alimenta suas histórias?
</b>
Os personagens. Ninguém acredita quando falo, mas é verdade. Meu papel é insignificante. Sou um digitador. Digito histórias que me são contadas. É isso. Cada livro vai aparecer para mim e vou conviver com ele muitas vezes sem saber. Convivo com os personagens durante muito tempo. A história que vou contar já está pronta para ser contada.

<b>Você diz que sua literatura é engajada, porém, não panfletária. Qual a diferença?
</b>
O sentido de escrever está em acreditar que uma história vai modificar uma pessoa. Para isso, é importante o diálogo entre a história e essa pessoa, de maneira que consiga ver o mundo com outros olhos: seja porque se reconhece na história, seja porque não se reconhece nela. A modificação como leitor só acontece quando você não oferece verdades para ele. E aí está a diferença entre engajamento e panfletagem. No engajamento você tenta descrever determinadas situações, propor reflexões, por exemplo, sobre a questão política do Brasil. Eu me considero engajado por isso. Mas isso é um engajamento na vida e na literatura. A literatura não tem outra serventia. Já o panfletarismo oferece verdades, não propondo reflexão sobre um determinado assunto. Quem dá resposta é autoajuda. E você sabe para onde caminha a autoajuda: você lê um livro de autoajuda a vida inteira e não se autoajuda.

<b>Pensando no Brasil, você acha que existe um momento para se fazer uma literatura mais otimista, esperançosa, e outro de uma literatura mais incômoda?
</b>
Alguém falou que o pessimista é um otimista com informação. Em termos de resultado, não. Nessa pergunta falamos de mercado. E ao se falar de mercado, há lugar para todos. E não é isso que importa na verdade, né? Eu não tenho o desejo de doutrinar ninguém. Meus livros não propõem doutrina, mas, sim, reflexão. Se há otimismo ou pessimismo ali, não sei. Posso te dar a minha opinião como leitor, não como escritor. Quando escrevo o livro e o entrego ao leitor o livro passa a ser dele. Daí, tira as conclusões necessárias – se é que tem de tirar alguma. Contudo, a esperança, pensada como esperança, é um problema, porque é um engano.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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