Variedades

Samba em construção

O bandolim chegou que era só o trapo, colado com fita adesiva e perfurado em três partes do corpo por um ex-dono sem piedade que resolveu instalar nele um captador de som. Um crime de fazer doer o peito de quem reconhece à distância uma legítima obra de arte dos anos 60. Sentado em sua marcenaria particular, Paulo César Batista de Faria investiga o instrumento com olhos de cardiologista. Quer refazer a roseta, tapar os furos e colar o tampo sem prejudicar a acústica. Uma operação delicada mas com boas chances de sucesso. Afinal, bandolim quebrado naquela casa é como rascunho de samba: um dia, Paulinho da Viola lhe arranja uma vida.

A reportagem chega e Paulinho deixa a marcenaria do quintal para abrir o portão. Aos 72 anos, seus discos e suas entrevistas são cada vez mais raros. Estar com ele só é possível depois de longas negociações para ajustes e reajustes de dias e horários. Agora está lá, diante de um repórter e dois fotógrafos em sua confortável casa de Itanhangá, no Rio, para falar de tudo o que podem inspirar seus 50 anos de samba, alguns de mecânico e outros tantos de marceneiro.

Paulinho olha para o gravador analógico do repórter: “Sabe que arrumaram um desses para mim, mas digital. Às vezes vem uma ideia e eu tenho que gravar. Mas um dia ele molhou e tudo o que eu tinha gravado se perdeu, tudo”.

E eram muitas ideias?

Sim, um monte. Perdi todas. Agora gravo no celular, o que parece um pouco mais seguro.

Então elas não escolhem mesmo lugar para aparecer…

Não, nunca. Eu tenho amigos que compõem e tocam todos os dias, como um trabalho, movidos por um hábito. Já eu levo muito tempo sem compor porque fico longos períodos sem pegar no instrumento. Antes eu gravava todos os anos e, muitas vezes, mudando a música até dentro do estúdio. Estava envolvido com aquilo de tal maneira que começava a ser atropelado pelas ideias.

Ou seja, criação, no seu caso, é mais suor do que inspiração.

Sim, em muitos casos. Já houve um tempo em que eu era muito estimulado pelas pessoas. Um período em que estava sempre ao lado de músicos, nas reuniões que meu pai fazia em casa. E quando voltava dos ensaios da Portela, também vinha inspirado. Hoje, gosto de ouvir música mas gosto também de ler, de sair, de conversar com os amigos. E gosto da minha marcenaria.

Aliás, era lá onde você estava quando chegamos aqui?

Era lá. Eu estou tentando restaurar um violão e um bandolim. É muito difícil você encontrar um luthier (construtor de instrumentos) que vai parar o seu trabalho para fazer isso. Então, eu resolvi fazer. O violão era de uma senhora que deixou o instrumento para mim com um recado, pedindo que eu aproveitasse a madrepérola dele. Já o bandolim está dando mais trabalho. Ele tinha furos e veio rachado. Não sei se vou conseguir arrumá-lo, mas pelo menos vai ser um belo exercício (risos).

Parece haver hoje outras coisas na sua vida além de música. Será que a tal chama da criação não se apaga mesmo com o tempo e dá lugar a outros prazeres?

Isso não é uma regra. Há pessoas mais velhas que compõem, escrevem, pintam todos os dias. No meu caso, nunca fui ansioso. Acabei de fazer um samba que minha filha vai gravar. Eu não ia fazer, mas ela me mostrava as coisas e eu ficava ali ouvindo até que um dia eu estava sentado e, de repente… (Pausa). Não sei explicar. Eu não estava nem com o instrumento no colo, há dias que não pegava no violão, mas me veio uma frase na cabeça e comecei a escrevê-la. E em pouco tempo havia feito uma letra com a música quase que definida.

Você fazia até dois discos por ano na década de 70. Esses espaços foram aumentando e seu último de inéditas é de 1996 (Bebadosamba). Não vai mais gravar?

Eu vou, mas não tenho ansiedade nenhuma. É verdade que se você vir a quantidade de discos que foram gravados por artistas da minha geração, vai perceber que eles gravaram muito mais do que eu. Acho que é porque sou assim mesmo, de repente eu vou e gravo, sem planejar. Estou com obras aqui em casa. Depois que acabar essa confusão, penso em me dedicar mais à composição, ao violão e aos shows. Agora, quando surgir uma oportunidade de gravar… Mas olha o que aconteceu em 1982: um dia antes de ir para o estúdio para começar a gravar um LP, eu estava preocupado porque não tinha nada para mostrar. E o que estou dizendo é verdade. Eu passei a noite em claro pensando no que iria dizer aos músicos. Fiquei sentando olhando pela janela da sala, angustiado, sem saber o que fazer. Quando não havia mais jeito, decidi que iria dormir e me desculpar no dia seguinte, dizer para o pessoal que havia sido impossível levar algo. Quando fui deitar, comecei a perceber o dia clarear. O sol nascia batendo no morro de Botafogo, um que fica atrás do cemitério, e eu fiquei assistindo. Pois não me pergunte como se deu: eu peguei um lápis e comecei a escrever. E quando minha família acordou, eu já tinha um samba pronto e outro começado. E o disco A Toda Hora Rola Uma História abre com esta música, Rumo dos Ventos.

As pressões parecem funcionar com você, Paulinho. O Fernando Faro chegou a trancá-lo em uma sala para obrigá-lo a compor uma música.

É verdade (risos). Eu resolvi fazer uma visita ao Faro, que dirigia a programação da antiga TV Tupi. Fui lá dar um abraço e ele, com aquele jeitão, veio assim: “Pô baixo, estamos aí com uma novela e a gente precisa de um tema para ela”. E eu disse: “Claro, posso ver isso, tranquilo”. Mas ele respondeu: “Sim, mas tem que ser agora”. E eu: “Mas agora? Nem sei que novela é essa!” E aí ele disse: “Você só vai sair daqui quando a música estiver pronta.” Trancou a porta e me deixou lá.

E você nem tentou sair?

Não, tentei nada (risos). Aí peguei o instrumento que ele deixou lá, fiz a música e deixei gravada no mesmo dia para a novela Simplesmente Maria. É, a pressão às vezes funciona (risos).

Duas coisas em sua mesinha de centro aqui da sala chamam a atenção. O que é esse livro sobre arqueologia mecânica?

Eu ganhei no último show que fiz. Houve um período em que eu achei que poderia aprender um pouco de mecânica e cheguei a fazer o motor de um carro sozinho. E não é que o carro andou (risos)? Era um Chevette 86. Eu tinha atração por carros e tenho ainda dois Karmann Ghia. Um, de 1970, está sendo restaurando em São Paulo agora. E o outro está guardado. Mas depois eu abandonei essa atração. Não dá pra gente fazer tudo nessa vida. Acabei ficando com a marcenaria (risos).

E ali você tem ali um LP do Elvis Presley. É seu mesmo?

É meu. Eu sempre adorei Elvis Presley, mas meu primeiro contato com o rock foi terrível. Eu era um adolescente, estudava no Largo do Machado e, junto com meu irmão, gostava de ouvir seresta, choro, sambas antigos. Era isso que a gente ouvia em casa. E naquela época, 1955, 1956, eu escutava no Largo do Machado os garotos dizendo algo como: “Vem aí um ritmo alucinante”. Eu ouvia aquilo sem ter nenhuma ideia do que era. Quando o rock chegou, veio em um filme chamado No Balanço das Horas. Foi uma coisa terrível porque a turma quebrava tudo nos cinemas. Eu não podia imaginar que uma música pudesse provocar uma coisa daquelas. Foi um choque. Eu via minhas primas dançando em concursos de rock com as pernas para cima e achava aquilo…

Você teve medo?

Eu sempre tive uma timidez excessiva na adolescência, sempre fiquei muito sozinho. Eu tinha amigos, acompanhava meu pai, mas eu era desse mesmo jeito que sou hoje. E o rock me fez ficar ainda mais retraído porque eu não conseguia entender nada daquilo.

E hoje você tem discos do Elvis.

Eu passei a ouvir rock muito tempo depois, e comecei a gostar. Comprei esse LP de Elvis cantando blues em uma loja de Brasília porque fiquei impressionado com a capa. Essa imagem do Elvis é intrigante, reveladora de uma expressão de tristeza. E as cores são lindas.

É difícil de entender quando você diz que não vive no passado. Não estamos aqui o tempo todo falando dele?

Olha, falar sobre isso não é fácil para mim. Hoje nem tanto, mas houve um período de grandes movimentos na música brasileira nos anos 60 em que eu ouvia muito de produtores e gravadoras algo como: “Ah, essa velharia tem que acabar”.
Eles falavam isso como se fosse possível apagar toda uma história, deixar de considerar a vida de milhões de pessoas que a construíram e a armazenaram. Não é possível passar uma borracha e dizer “olha, a partir de hoje a música será assim e o resto não existe mais”. Claro que sempre vão existir jovens com ideias novas, mas mesmo aquilo que um dia foi muito revolucionário já faz parte da história. Vejo jovens se referirem a coisas que ouviram há cinco anos como se fosse passado.

O mesmo formato instrumental e poético que consagrou o samba não o aprisionou, não o tornou um gênero que permite pouca reinvenção?

A música popular caminha de uma maneira diferente. Você tem jovens que, com seu talento e vigor, trazem ideias novas. E mesmo no samba existe isso. É uma infinidade de novidades sem nenhum sentido de saudade ou retorno. Mas há uma dificuldade grande em lidar com essa quantidade de informação. Você deixou de ler, de ver e de ouvir centenas de obras construídas ao longo da história. E já está lidando com uma quantidade absurda de obras novas. Como lidar com isso? É uma coisa assustadora.

Isso angustia você?

Um amigo meu dizia: “Olha, quer saber de uma coisa? Eu não vou poder ler tudo o que eu gostaria, então vou separar o que eu acho que é fundamental e, se der tempo, eu leio o resto”. Ele fez um plano que eu não fiz, mas penso o mesmo. Eu gostaria de ouvir toda a música de Pixinguinha, mas é impossível. Eu gostaria de ouvir toda a música de Bach, mas não vai dar. O que eu posso fazer?

Não dá para ouvir todo o Pixinguinha em uma vida?

Não dá porque eu acredito que exista muita coisa dele perdida e outras que nem foram gravadas. Eu ouço o que posso, mas nenhum ser humano vai ouvir tudo. E quando a gente percebe isso, de alguma maneira pensamos o seguinte: “Eu não posso mais correr atrás dessa bola”. E olha que eu adoro jogar futebol, mas não posso mais correr atrás dessa bola.

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