As crianças são as principais vítimas dos casos de tortura registrados nas delegacias do Estado de São Paulo. Elas são agredidas pelos pais ou responsáveis. Ao mesmo tempo, os inquéritos abertos para investigar policiais acusados desse crime representam apenas 3,4% do total de relatos dessa violência feitos por presos à Justiça. Esses são algum dos dados obtidos pelo Estado por meio da Lei de Acesso à Informações e pela análise de Boletins de Ocorrência registrados sobre esse delito.
Para especialistas, os dados indicam um cenário de impunidade na aplicação da Lei 9.455, que definiu o crime há 20 anos. A começar pelo fato de esse ser um delito pouco registrado nas delegacias. O sistema Infocrim, da Secretaria da Segurança, mostra que, de 2011 a 2017, a tortura apareceu como delito único em 154 dos boletins feitos no Estado, ou em 1 a cada 15 dias – esse número pouco mais que dobra quando ela é associada nesses registros a outros crimes, como roubos, sequestros e tráfico de drogas.
A reportagem analisou 36 boletins de ocorrência – 16 em que a tortura aparecia sozinha e 20 nos quais ela era associada a outros crimes – que foram feitos em delegacias da Grande São Paulo em 2016 e 2017. O perfil das vítimas e o dos acusados e a razão do crime expostos nesses BOs mostram que castigar crianças é a motivação em 33% dos fatos – com a exceção de uma vez, os autores eram os responsáveis pela vítima (pai, mãe, padrasto ou madrasta). Ao todo, 13 deles foram acusados de maltratar 16 vítimas.
Assim foi em 21 de outubro de 2016, quando os pais de um menino de 4 meses foram presos em Santo André, no ABCD. O casal havia levado o filho a um hospital, onde o médico constatou que a criança tinha lesões novas e antigas – a mais recente causara um trauma craniano – e decidiu chamar a polícia. E o caso de um menino de 8 anos que vivia em Jandira, na Grande São Paulo, cuja mãe, uma vendedora de 34 anos, dava-lhe surras com um pedaço de pau e com uma colher aquecida no fogo.
Omissão
“A tortura contra crianças revela uma sociedade que incorporou a violência como forma de resolução de problemas”, disse o advogado Martim Almeida Sampaio, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Seção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP). Para ele, haveria ainda outro problema: a omissão do Estado, que “não chega aonde devia chegar”.
É isso que explicaria o uso da tortura pelos tribunais do crime. Integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) formam o maior grupo de acusados – 21 homens da facção teriam participado desses “julgamentos” para punir pessoas suspeitas de ligações com a polícia ou com facções rivais.
“As vítimas só não foram mortas porque a polícia interveio e prendeu os bandidos”, afirmou o delegado Albano David Fernandes, diretor do Departamento de Polícia Judiciária da Macro São Paulo (Demacro). Há ainda casos (16,6%) cuja motivação era passional – marido, mulher ou sogra como autores – ou que envolviam a apuração de crimes feita por particulares ou policiais.
Policiais
Criada em 1997, a lei de tortura tinha como objetivo principal coibir o uso da violência contra suspeitos de crimes. A lei foi aprovada logo após o escândalo das blitze feitas por PMs na Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo, que levaram à demissão de dez policiais. Raros são, no entanto, os relatos de supostas vítimas que levam à punição de policiais, guardas ou agentes prisionais.
Exemplo disso é o fato de as audiências de custódia feitas pelos juízes-corregedores na cidade de São Paulo terem recolhido de presos 779 alegações de tortura contra policiais civis entre o começo de 2015 e agosto de 2017. No mesmo período, a Corregedoria da Polícia Civil abriu 24 inquéritos e 3 apurações preliminares de tortura na capital. E não indiciou nenhum policial por isso no período – houve apenas um indiciamento no Estado. A Secretaria da Segurança Pública informou que “o trabalho das polícias é norteado pela correção e desvios de conduta são exceção”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.