“Parecia que o fim estava próximo”, escreve o fotógrafo Sebastião Salgado no prefácio do livro Kuwait, Um Deserto em Chamas (Taschen), que será lançando na terça-feira, 25, para convidados, na Galeria Mario Cohen, mesmo local onde abre uma exposição de 16 fotos inéditas, registradas entre o começo de agosto de 1990 e o fim de fevereiro de 1991, durante um dos maiores desastres não naturais do mundo ocorrido no deserto kuwaitiano.
“Com o sol obliterado pela fumaça escura, uma paisagem dantesca se estendia até onde a vista alcançava”, continua o fotógrafo. “O próprio horizonte estava marcado por tochas de fogo onde o petróleo ardente jorrava do deserto sem vida. E por toda parte, grossas torres de petróleo bruto eram projetadas ao céu antes de caírem de volta à terra e formarem lagos negros de consistência melosa que poderiam se transformar em incêndios gigantescos num piscar de olhos. E ainda havia o barulho, um estrondo ensurdecedor que aumentava à medida que eu me aproximava da fonte do cataclismo: centenas de poços de petróleo sabotados e incendiados pelo exército iraquiano próximo ao fim de sua ocupação no Kuwait.”
Salgado estava na Venezuela fotografando justamente a indústria petroleira do país quando soube que os campos do Kuwait estavam em chamas – com o avanço da coalizão militar internacional (comandada pelos Estados Unidos) avançando sobre o território kuwaitiano, soldados iraquianos, na fuga, destruíram mais de 600 poços, deixados em chamas ou jorrando intermitentemente. “Percebi que ali estava a grande matéria – não me interessei em registrar a Guerra do Golfo, como faziam os outros jornalistas”, conta o fotógrafo à reportagem, em entrevista por telefone desde Paris.
“Liguei para Kathy Ryan, editora de fotografia da The New York Times Magazine, e propus, entusiasmado, minha ideia de cobertura. Ela não ficou muito animada, então falei com o editor da revista, Warren Hoge, que foi correspondente no Brasil, e ele aceitou.”
Antes de iniciar o trabalho, o fotógrafo precisou esperar algumas semanas, período em que o exército de Saddam Hussein deixava a região ao mesmo tempo em que as empresas (americanas e canadenses, em sua maioria) solicitadas para extinguir o incêndio reuniam suas equipes.
Em abril de 1990, Salgado chegou à fronteira entre a Arábia Saudita e o Kuwait e, depois de uma impaciente espera pela permissão para seguir adiante, finalmente conseguiu viajar, em um 4 X 4 alugado rumo às densas nuvens de fumaça preta. Mesmo com toda sua experiência, ele logo descobriu que não estava preparado para a situação que iria encontrar. “Grupos de dez homens com a pele totalmente enegrecida pelo petróleo, rapazes da roça, vindos do interior dos Estados Unidos e Canadá, que entendiam de campos petrolíferos e que sabiam como combater o fogo”, relembra ele, diante de não mais que 15 equipes lutando contra cerca de 600 poços em chamas. “O barulho era tão alto que eles só se comunicavam gritando nos ouvidos uns dos outros.”
O cenário era dantesco, pois, mesmo depois que o fogo era controlado, os poços continuavam lançando petróleo ao ar, chegando a atingir 12 metros de altura e formando pequenos lagos que, com apenas alguma faísca, voltavam a arder. “O petróleo daquela região é de alta qualidade, portanto, quase líquido, diferente da substância grossa que estamos acostumados a ver”, comenta.
Mesmo diante de um ambiente tão perigoso, os homens pareciam não detectar a dimensão do perigo. Sebastião Salgado conta que muitos ficavam diante das chamas durante muito tempo, sem perceber que sua imunidade se esvaía aos poucos graças à ingestão da fumaça tóxica. “De repente, o combatente tinha vertigem e simplesmente caía, desmaiado. Imediatamente, era socorrido por algum colega, que o levava para os lagos criados com água bombeada do mar.”
Para enfrentar as mesmas adversidades, o fotógrafo brasileiro contou com sua tradicional astúcia banhada por uma boa dose de sorte – próximo dos campos, ele descobriu suprimentos deixados pelo exército iraquiano em sua fuga desenfreada. “Eles construíram muitas trincheiras e túneis, nos quais encontrei tanto caixotes de rifles Kalashnikov e munição, quanto itens mais úteis para mim, como botas robustas e trajes de proteção para usar no caso de uma guerra química”, relata Salgado que, como se interpretasse Indiana Jones na vida real, tinha de evitar barbantes e fios estrategicamente colocados nas trincheiras – eram armadilhas que, se rompidas, detonavam granadas. “Mesmo naquela época, essas guerras duravam apenas três ou quatro dias, por isso, fiz questão de manter um bom estoque dentro dos destroços de um ônibus abandonado do qual me apropriei temporariamente.”
Os lagos de petróleo representavam um perigo à parte, pois não se sabia ao certo a sua profundidade. E, quando a visibilidade era comprometida pela densa fumaça, os carros corriam o risco de deslizar para dentro do lago. “Certa tarde, um jornalista e um fotógrafo do Financial Times, David Thomas e Alan Harper, morreram quando seu sedã compacto foi engolido pelas chamas ao ser levado para dentro de uma rasa lagoa de petróleo ardente, aparentemente desorientados pela fumaça”, escreve o fotógrafo, no prefácio do livro. “Minutos mais tarde, um caminhão-pipa e um caminhão-tanque foram atingidos pela mesma explosão e os três homens que estavam nos veículos também morreram. Eu havia passado pelo mesmo caminho que essas vítimas desafortunadas um pouco antes.”
Entre tantas imagens captadas naquelas semanas no Kuwait, Salgado conta que justamente a mais impactante ficou de fora do material agora selecionado para o livro e a exposição. Trata-se da foto de um soldado iraquiano morto, cujo corpo jazia ao lado de um tanque russo T54, ainda agarrado à sua metralhadora. “A imagem é terrivelmente bela, pois mostra aquele corpo completamente encharcado de petróleo e poços queimando ao fundo, provocando uma nuvem incrível”, conta ele, que decidiu enterrar o soldado movido por sentimentos religiosos. “Sua alma não vagaria em paz, se não fizesse isso. E não coloquei a foto no livro porque aquela não era a minha história e sim a dos homens que combatiam o fogo.”
E Salgado só voltou a esse material depois de 25 anos por um motivo especial: depois de sofrer um acidente em 2012, temeu que aquelas fotos, que nem foram ampliadas, terminassem esquecidas. “Nem Lélia, minha mulher, sabia desse material. Eu não podia morrer sem torná-las públicas.”
Dores
Sebastião Salgado chega a São Paulo nesta segunda-feira, 24. Vai desembarcar com dificuldade de locomoção. “Fui dar um salto arriscado para um homem de 72 anos quando estava no Amazonas, há alguns meses, e senti dores no joelho”, conta. “Fui operado, mas a região continuou com dores e inchaço. Fiz outra intervenção, mas terei ainda de fazer uma prótese e tirar o que restou do menisco.”
Mesmo assim, Salgado participa, na terça-feira, 25, da abertura para convidados da exposição de suas fotos, na Galeria Mario Cohen, que fica na Rua Joaquim Antunes, 177, conjunto 12.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.