Grata surpresa da seleção brasileira, o atacante Raphinha poderia ter atuado pela Itália. Em 2020, ele já era monitorado pelos dois países e tinha dupla cidadania. O jogador recebeu contatos da Federação Italiana e estava com agendamento marcado para tirar o passaporte italiano, mas a impossibilidade de viajar devido à pandemia o impediu e o Brasil ganhou a disputa. Casos como este têm sido cada vez mais comuns no futebol. As seleções têm travado uma intensa batalha para selecionar jogadores com mais de uma nacionalidade.
Em setembro de 2020, a Fifa alterou as regras para que um jogador possa mudar de seleção. Antes, um único jogo oficial já inviabilizava a troca. Agora, os critérios são mais flexíveis: até três jogos oficiais (excluindo Copa do Mundo ou torneios continentais), desde que o jogador em questão tenha disputado antes dos 21 anos, ou se o atleta atuou apenas em amistosos, seja qual for sua idade. O atleta precisa ter a nacionalidade da segunda seleção escolhida à época em que jogou pela primeira. Três anos devem ter se passado desde a data do jogo em que o jogador disputou para que ele seja elegível a mudar de seleção. Não há exigência de tempo para partidas amistosas.
"A identidade nacional é muitas vezes vista de forma bastante limitada. No entanto, é algo mais complexo. Para alguns, pode parecer simples, mas para outros de origem imigrante ou multiétnica, ela pode ser complexa, multifacetada. Precisamos pensar em identidades mais multidimensionais e híbridas", explica o professor e pesquisador de geografia David Storey, da Universidade de Worcester, e autor do livro Football, Place and National Identity: Transferring Allegiance (em tradução livre, Futebol, lugar e identidade nacional: transferindo fidelidade)
Nos últimos anos, muitos jogadores com mais de uma nacionalidade trocaram de seleção, dentre eles o zagueiro Aymeric Laporte, que nasceu na França e tem ascendência espanhola. No ano passado, ele deixou a seleção francesa pela falta de oportunidades para atuar pela Espanha. Esse tem sido o principal motivo que faz o jogador vestir outra camisa nacional, principalmente pensando em disputar uma Copa do Mundo, sonho de dez entre dez atletas.
Vários atletas costumam não descartar logo de cara a oportunidade de representar uma ou outra seleção. Seus representantes são abordados por federações e ouvem projetos que as seleções têm para o jogador, como fortalecimento de laços familiares, chance de jogar regularmente, oportunidade de disputar grandes competições e até vantagens comerciais.
Outra estratégia de persuasão se dá com jogador e técnico ligando para o atleta no intuito de convencê-lo a escolher a sua seleção. As relações entre as partes geralmente são construídas a médio e longo prazo, inclusive devido aos jovens atletas não terem pressa para definir uma seleção com base nas novas regras. A Itália tem chamado a atenção por ter contado na última Eurocopa com Jorginho, Emerson Palmieri e Rafael Tolói, todos nascidos no Brasil. Em janeiro deste ano, foi a vez de o atacante João Pedro e do zagueiro Luiz Felipe serem convocados. Mas os italianos não são os únicos.
A Eurocopa 2020 teve 56 atletas de 13 países participantes que poderiam representar 22 nações da África, segundo levantamento do Estadão. O caminho inverso também é comum e vem mudando. O número de convocados de Senegal, Camarões e Nigéria para a Copa do Mundo de 2002 nascidos fora desses países era de 5,7%. Isso mudou significativamente para a Copa Africana de Nações realizada neste ano, quando esse grupo representou 29,7% do total de atletas inscritos.
Países de pouca tradição no futebol também têm entrado nessa disputa. O Canadá, que está muito perto de se classificar para a Copa do Mundo, é um desses casos. A Jamaica é outro exemplo e tem buscado jogadores nascidos na Inglaterra com poucas chances na seleção europeia.
Algumas seleções têm descoberto jogadores elegíveis através do trabalho de torcedores e até jornalistas. Nascido na Inglaterra, Ben Brereton jogava na segunda divisão do país e tudo mudou na sua carreira em 2020. O atacante comentou em uma entrevista que era elegível para representar o Chile. A informação foi parar no jogo Football Manager. Um youtuber chileno viu o perfil de Brereton, gostou das estatísticas dele na vida real e iniciou uma campanha nas redes sociais defendendo sua convocação. Em 2021, Brereton, que sabe poucas palavras em espanhol, foi convocado e vem de boas atuações.
Há mais de dez anos, o salvadorenho Hugo Alvarado vasculha a internet atrás de jogadores que possam reforçar a seleção do seu país. Ele já identificou dezenas que se encaixam no perfil, tanto em ligas dos Estados Unidos ou até em universidades. Seu trabalho ganhou reconhecimento e Alvarado virou funcionário da federação de futebol salvadorenha.
Já Cabo Verde buscou um jogador através do LinkedIn. Nascido na Irlanda, Roberto Lopes atuava no futebol local, quando disse em uma entrevista que poderia representar o país africano. Um jornalista avisou a Federação de Cabo Verde, que ignorou a informação. Anos depois, o jogador recebeu uma mensagem em português no LinkedIn do então técnico da seleção, mas ignorou por achar que era mentira. Nove meses depois, o treinador voltou a entrar em contato e, dessa vez, foi correspondido. Lopes representou Cabo Verde na Copa Africana deste ano.
"PERDA" DE DIEGO COSTA MUDOU A SELEÇÃO BRASILEIRA – A CBF entendeu a necessidade de um melhor monitoramento de seus jogadores há poucos anos. Com o ótimo desempenho do atacante Diego Costa na Espanha em 2014 após ter feito dois jogos pelo Brasil no ano anterior, a pressão sobre ter deixado escapar um camisa 9 de destaque levou a entidade a criar um projeto para que o erro não se repetisse.
Foi então que se iniciou um mapeamento dos jogadores atuando no exterior que poderiam representar a seleção, capitaneado por Alexandre Gallo, coordenador das categorias de base à época. O monitoramento e acompanhamento trouxe nomes como dos meias Rafinha, cujo irmão Thiago Alcântara já representava a Espanha, e Andreas Pereira, nascido na Bélgica e que atuava pela seleção de base do país europeu.
"Encontramos mais de 100 jogadores que não tínhamos registros na CBF. É trabalho de formiguinha e para pescar alguns nomes. O Brasil é um grande exportador de talentos. Estamos fadados a perder alguns porque não temos como convocar todos", avalia Gallo.
Muitos vão à Europa ainda muito jovens, o que pode dificultar serem convocados para as seleções de base. Jorginho, da Itália, deixou o Brasil ainda com 15 anos. Para muitos brasileiros, obter cidadania europeia é um componente facilitador para integrar os elencos dos clubes do continente.
EUROPEUS ESTAVAM DE OLHO EM RAPHINHA E GABRIEL MARTINELLI – Além de Raphinha, a Itália também tentou Gabriel Martinelli, campeão olímpico em 2021, que já tinha dupla cidadania. A CBF já sabia do interesse da Azzurra. Em 2019, ele recebeu convocações para treinos do Brasil sub-19 e, logo depois, Tite o chamou para os treinamentos da Seleção na Copa América.
Outro jogador também foi motivo de disputa. No ano passado, o meio-campista Matheus Nunes, do Sporting, foi convocado para representar as seleções brasileira e portuguesa e optou por atuar pela equipe lusa. O jogador de 23 anos nasceu no Rio de Janeiro, mas deixou o país há dez anos e até adotou o sotaque português.
A natureza complexa e fluida da identidade nacional nos dias de hoje influencia cada vez mais o presente e o futuro do futebol de seleções e pode ter mais desdobramentos nos próximos anos. "Historicamente, o futebol tinha regras (para jogadores representarem seleções) mais liberais e houve casos de atletas atuando por mais de um país no início e meados do século XX. As regras se tornaram mais rígidas e agora estamos em uma fase em que elas estão se tornando um pouco mais liberais novamente, então isso não é realmente um fenômeno totalmente novo. Acho que as regras continuarão a evoluir e provavelmente se tornarão ainda mais flexíveis", aponta Storey.