Variedades

Sem projetos para a TV, Jô Soares mira o teatro

“Cansei de brincar nesse playground”, afirma Jô Soares, com um sorriso pensativo. Ele conversa com o jornal O Estado de S. Paulo em seu apartamento, no bairro de Higienópolis, onde arquiteta seus projetos. Em nenhum deles, aliás, figura a televisão, o tal “playground”, meio no qual Jô se notabilizou como comediante e entrevistador e do qual se despediu em 2016, depois de quase 50 anos praticamente ininterruptos no ar. “Antes, eu ia feliz para as gravações porque sabia que ia me divertir. Depois de um tempo, perdi essa felicidade.” Foi o ponto final de uma trajetória que incluiu programas humorísticos já clássicos e, como talk-show, uma senhora coleção de mais de 15 mil entrevistas, realizadas no SBT e na Globo, emissora que deu o ponto final dessa carreira.

Engana-se, porém, quem acredita estar diante de um homem melancólico – aos 80 anos, Jô Soares revela-se um artista com muitos planos de conquistas futuras. O teatro, por exemplo, voltou ao seu radar e, na sexta-feira, dia 4 de maio, ele estreia o espetáculo A Noite de 16 de Janeiro, em que dirige e faz uma participação como ator. Também trabalha na segunda parte de sua autobiografia O Livro de Jô, em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr. e com previsão de lançamento para outubro. Finalmente, já elabora seu próximo romance policial, que deverá ter um padre brasileiro envolvido em um crime no Vaticano da época de Benito Mussolini.

“Realizo agora um projeto antigo: o de criar um grupo de repertório”, conta Jô, enquanto aguarda a chegada dos 14 atores que encenam A Noite de 16 de Janeiro. A maioria esteve com ele em espetáculos anteriores, como Tróilo e Créssida, de Shakespeare, e Histeria. Como a ida ao Teatro Tuca, onde acontecerá a temporada da peça, só acontece na próxima semana, ele ensaia com o grupo em seu amplo apartamento, adaptado com um minipalco e um jogo de luzes. A trupe se completa com o próprio Jô, que tem um papel pequeno, de poucas falas, mas de importância vital: o do juiz. “É um papel sem relevância, mas que não sai de cena, o que me permite vigiar todo o elenco bem de perto”, diverte-se.

Escrito pela russa Ayn Rand (1905-1982), A Noite de 16 de Janeiro se passa em 1934 e encena o julgamento de um homicídio. A corte ouve o caso de Andrea Karen, uma ex-secretária e amante do empresário Bjorn Faulkner, de cujo assassinato ela é acusada. A peça não retrata diretamente os eventos que levaram à morte do empresário. Em vez disso, os jurados devem confiar em testemunhos das personagens para decidir se Karen é culpada ou não. “A grande sacada do texto está no júri de 12 integrantes, formado a cada apresentação por convidados e pessoas da plateia, que deverão dar seu veredicto”, explica Jô. “Por isso, temos dois finais preparados: para a absolvição e para a condenação.” E, nas prévias realizadas entre amigos, Karen foi mais inocentada.

Jô chegou ao texto por acaso, enquanto buscava uma peça de tribunal, algo pouco montado no Brasil. O que lhe chamou atenção foi a data de 16 de janeiro do título, justamente o dia de seu aniversário. “Comecei a ler motivado por esse detalhe e logo fiquei apaixonado pela trama, ao mesmo tempo em que percebi minha completa ignorância em relação à autora”, recorda-se. De fato, ainda que tenha trabalhado como roteirista de cinema e dramaturga, Ayn Rand notabilizou-se pelo seu sistema filosófico conhecido como Objetivismo, que enfatiza suas noções de individualismo, autossustentação e livre mercado, temas presentes em seus romances de maior sucesso, A Nascente e especialmente A Revolta de Atlas, considerado a Bíblia do capitalismo. Entre seus devotos, estão celebridades altamente influentes como Brad Pitt e Eva Mendes, e políticos como o ex-presidente da Câmara de Deputados dos EUA, Paul Ryan.

“É curioso que, apesar de ter um discurso extremamente liberal, Ayn Rand surpreende ao adotar ideias esquerdistas em A Noite de 16 de Janeiro, tornando a peça em um exemplo de subversão dentro de sua obra”, comenta Jô que, como juiz, sente um fascínio pelo exemplo de poder do magistrado: o martelo. “É irresistível, o martelo fala por mim”, afirma ele, que se vê próximo de outra notável figura. “A escritora e conferencista americana Fran Lebowitz só aceitava trabalhar como atriz quando convidada pelo seriado Law & Order para fazer o papel de juíza. Ela sempre disse que o poder do martelo é insuperável. Eu não sabia, mas concordo plenamente com ela.”

Essa é umas das explicações que surgem em um vídeo que será projetado antes do início da peça. Nele, Jô revela seu fascínio pela peça e pela sua atualidade. “O texto foi escrito em 1934 e se passa nos Estados Unidos, assim, qualquer semelhança com Odebrecht, JBS, Petrobrás e com a Lava Jato é mera coincidência”, diz ele, no vídeo. E completa: “Então procurador-geral da República, Rodrigo Janot citou Ayn Rand quando abriu a denúncia que tornou réu o senador Aécio Neves”.

“Como a peça é inteiramente narrativa, ou seja, conta um fato que já aconteceu sob diferentes pontos de vista, nosso desafio está em sustentar a atenção da plateia”, conta o ator Marco Antonio Pâmio, que vive o promotor. “E isso sofre um abalo no último terço da peça, quando acontece uma reviravolta atordoante.” Pâmio estabeleceu um interessante jogo de disputa com Cassio Scapin, que interpreta justamente o advogado de defesa. “Até na forma de olhar um para o outro, nós criamos um código”, completa Scapin que, espectador assíduo de séries policiais, descobriu um fator determinante para conquistar a simpatia do público nessa guerra de argumentações que é um tribunal: “É preciso ser carismático”.

Entre os dois, uma série de personagens, como a governanta vivida por Tuna Dwek. “É uma mulher moralista, que vive no limite da dor”, conta ela, que diverte o diretor com o sotaque germânico que usa em cena, recurso já utilizado por Jô de forma hilariante no humorístico Praça da Alegria, nos anos 1970.

Com a televisão de volta à conversa, Jô não pretende fazer como o apresentador americano David Letterman que, depois de deixar o comando do Late Show em 2015, voltou neste ano com entrevistas especiais, veiculadas pela Netflix. “Sou como Johnny Carson (célebre apresentador do The Tonight Show durante exatos 30 anos): sei a hora de parar.”

A NOITE DE 16 DE JANEIRO
Teatro Tuca. Rua Monte Alegre, 1024. Tel.: 3670-8455. 6ª, 21h30. Sáb., 21h. Dom., 19h. R$ 100.
Até 9/12. Estreia 5/5

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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