Os casos de adulteração de leite investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público (MP) ao longo de 2014 provocaram uma crise sem precedentes na cadeia leiteira do Rio Grande do Sul que resultou em laticínios fechados, suspensão de pagamento a produtores e queda no preço do produto. Com a imagem manchada e a estrutura estremecida, o setor inicia o ano de 2015 com o desafio de recuperar credibilidade. Para isso, canaliza esforços em medidas que buscam o aperfeiçoamento da coleta e transporte do leite, com investimento em tecnologia e legislação específica.
Até meados de dezembro, de acordo com o MP gaúcho, a Operação Leite Compen$ado havia prendido 41 pessoas e denunciado 65 por adulteração de produto alimentício em diferentes cidades. Os acusados participavam de esquema de fraude que consistia em adicionar água e sal para aumentar o volume do produto transportado às indústrias. Em outros casos, usavam substâncias como peróxido de hidrogênio e soda cáustica para recuperar leite estragado. Iniciada em 2012, a operação teve desdobramentos nos últimos meses que causaram um impacto expressivo no mercado do leite gaúcho. As investigações continuam.
“2014 foi um ano para esquecer”, afirmou ao Broadcast, serviço em tempo real da Agência Estado, o vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag), Carlos Joel da Silva. Se o setor já vinha sofrendo com as dificuldades financeiras apresentadas por algumas indústrias, o problema foi potencializado pela descoberta das fraudes. “Estimamos que 8 mil produtores tenham saldo a receber das empresas. Produtores que entregaram leite nos últimos meses e ainda não receberam”, disse Silva. Segundo ele, a dívida com os pecuaristas do Estado pode alcançar R$ 60 milhões.
Embora a maior parte das irregularidades ocorresse no transporte do leite cru, indústrias e postos de resfriamento também foram alvo da operação. Um exemplo é a Hollmann, da cidade de Imigrante. Conforme o MP, a empresa sabia do esquema que corrigia a acidez de leite velho com substâncias químicas, e aceitava receber a carga adulterada. O proprietário chegou a ser preso como parte da investigação e, em julho, a Hollmann entrou em recuperação judicial.
Além disso, a diminuição das vendas em consequência das fraudes prejudicou as finanças mesmo de indústrias que não tiveram envolvimento com o escândalo. Silva entende que a situação comercial tende a se normalizar já que novos players começam a entrar no mercado gaúcho, assumindo, inclusive, as operações de empresas que estão em recuperação judicial. Ele cobra, no entanto, maior atuação dos governos estadual e federal para escoar a oferta do Estado, convertida em leite em pó para ter maior durabilidade. “Estamos com armazéns abarrotados e precisamos vender para outros Estados, até para outros países”, explicou.
O objetivo é interromper a trajetória de queda do preço do produto. Segundo Silva, o litro do leite que já foi vendido por R$ 1,15 era comercializado pelos produtores por R$ 0,94 em meados de dezembro. Em regiões onde ocorreram as fraudes, o preço fica ainda menor.
Ação do governo
De acordo com o secretário da Agricultura do Rio Grande do Sul, Claudio Fioreze, o governo já está fazendo a intermediação para desovar o estoque do leite em pó, por meio de políticas sociais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA). O secretário observou que o Rio Grande do Sul produz uma média de 11 milhões de litros de leite por dia e que os lotes adulterados, identificados pela Operação Leite Compen$ado, representam menos de 0,5% do volume total do produto que circula no Estado.
Para Fioreze, a descoberta dos casos de fraude comprova que existe um bem-sucedido processo de fiscalização do leite gaúcho. “Criou-se uma imagem de que o nosso leite é ruim. Não é. Os dados do Ministério da Agricultura mostram temos o maior índice de conformidade com os padrões de qualidade”, disse. “O que está sendo feito é separar o joio do trigo. Uma depuração da cadeia produtiva, dolorosa mas necessária, e que vai acabar, a médio e longo prazos, se revertendo em maior qualidade do leite.”
Ele reconheceu, porém, que a Operação Leite Compen$ado afetou o mercado e que é necessário adotar ações para profissionalizar a cadeia e recuperar a confiança do consumidor. Uma das principais medidas defendidas por Fioreze é a aprovação do projeto de lei 187, apresentado em setembro deste ano pelo deputado Luiz Fernando Mainardi, e que aguarda apreciação da Assembleia Legislativa gaúcha. A ideia é acabar com a figura do transportador que opera adquirindo o leite in natura dos produtores para revender às indústrias, sem ter vínculo com nenhuma das partes.
Como as fraudes costumam ser praticadas nesse processo intermediário, o projeto de lei prevê que o comércio de leite seja feito diretamente entre produtores e indústrias ou cooperativas e indústrias, cabendo a esta última a responsabilidade de controlar a qualidade do produto recebido. Hoje, apenas 50% da transação comercial é feita de forma direta. De acordo com Fioreze, existe um acordo para votação em fevereiro de 2015. “Há consenso para aprovação, estamos empenhados nisso”, comentou.
Para representantes do setor, outra ideia a ser estudada no futuro é a mudança da forma de pagamento do produto. “No Rio Grande do Sul, se paga o leite por quantidade, não por qualidade. É preciso mudar isso”, disse Silva, da Fetag.
Divergências
Outra bandeira do governo estadual é o Instituto Gaúcho do Leite (IGL), que foi criado no início deste ano para realizar ações que visem a aumentar a qualidade do leite gaúcho, a inovação tecnológica e a promoção comercial do produto. O IGL será alimentado por recursos provenientes do Fundo Estadual do Leite (Fundoleite), com contribuições da indústria e do governo.
Tanto o IGL como o Fundoleite sofrem resistência da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul). “Já temos um fundo, o Fundesa (Fundo de Desenvolvimento e Defesa Sanitária Animal). Não haveria por que criar um novo tributo”, argumentou o presidente da Comissão de Leite da Farsul, Jorge Rodrigues.
Segundo Rodrigues, mais do que combater a terceirização da coleta e transporte do leite, o importante seria informatizar e sistematizar o processo, desde a retirada do produto da propriedade rural até a chegada à indústria. “Isso vai tirar a possibilidade de aumento ou diminuição de carga”, disse. Rodrigues acrescenta que equipamentos e procedimentos nesse sentido estão sendo testados, e que os recursos para a implantação das novas ferramentas poderiam ser aportados pelo Fundesa.
Assim como a Farsul, o Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados do Estado do Rio Grande do Sul (Sindilat-RS) questiona a arrecadação do Fundoleite – e chegou a entrar com uma ação na Justiça para suspender o recolhimento. Contudo, o secretário-executivo da entidade, Darlan Palharini, reconhece que a medida foi na verdade uma forma de chamar a atenção do governo para ampliar o diálogo. “Não somos contra a taxa, sabemos que é necessária. Em 2015 deve haver uma conversa mais próxima para discutir o setor e encontrar um denominador comum”, explicou. A nova diretoria da entidade assume em janeiro.
Palharini revelou que o Sindilat-RS deveria terminar em dezembro uma pesquisa qualitativa e quantitativa para avaliar efetivamente se as prisões e casos de fraude abalaram o consumo de leites e derivados produzido no Rio Grande do Sul. “Queremos saber se o consumidor migrou para outras marcas. Esses dados vão basear as próximas ações”, informou.