O psicólogo aposentado Carlos Alberto Correia, 65 anos, nunca havia esperado tanto por um corte de cabelo. Foram quase duas horas até chegar a sua vez de ser atendido. "Mas valeu a espera", argumenta. Ele aguardou com paciência porque quem o atendeu foi João Araújo, o Didi, famoso barbeiro de quase toda a vida de Pelé, sobre o qual Correia queria ouvir histórias.
Havia apenas um garoto na frente de Correia na fila para aparar o cabelo. O problema é que jornalistas do Brasil e do exterior e outros turistas queriam conversar com o barbeiro mais famoso de Santos, um senhor baixo, tímido e de cabelo grisalho que cortou durante mais de 60 anos o cabelo do Rei do Futebol.
"Eu criei esse corte quando ele tinha 16 anos", conta ao Estadão o cabeleireiro. "Ele gostou tanto que continuou cortando o cabelo dele até a hora da morte", relata o barbeiro que se tornou amigo de Pelé.
A fachada do salão informa que se trata de um lugar especial: "Cabeleireiro do Pelé de você também". No interior do pequeno espaço ladeado por um famoso boteco no entorno da Vila Belmiro, existem quase que incontáveis fotos de Didi com o Rei, além de camisas do Santos, outros objetos e pôsteres.
A primeira das fotos com o então garoto Edson ele posiciona à sua frente, em cima da mesa onde estão suas tesouras, navalhas e pentes. O porta-retrato exibe dois jovens. O de 18 anos cuidando do topete do menino de 16 anos do Santos, cuja trajetória de brilho no futebol estava começando naquela época.
Se Pelé se orgulha de ter feito mais de mil gols, o sereno barbeiro se gaba de ter cuidado do visual do Rei do Futebol mais de mil vezes. Em maio de 2015, seu antigo caderninho avisou: Didi chegou ao milésimo corte do maior jogador de todos os tempos.
"A última vez que cortei o cabelo dele foi no ano passado", relata Didi, de 84 anos, e inúmeras memórias de Pelé. A saúde frágil impediu que o Rei continuasse indo até o salão. Mas ele continuou fiel ao amigo. "Ele ficou doente, não podia vir mais aqui, mas ele mandava me buscar e eu ia lá na casa dele, em São Paulo, e também no Guarujá. Era sempre assim", relata o profissional.
João passou a ser Didi pela semelhança com o homônimo ídolo do Botafogo e do Fluminense, bicampeão mundial com a seleção brasileira e criador do chute folha seca. Foi Pelé quem apelidou o amigo assim dias depois de ter lhe conhecido.
"Lembro dele garoto quando chegou aqui. Era um garotinho. Ninguém dava nada por ele. Pensávamos que daria um bom jogador, mas foi muito mais que isso".
Na quinta-feira, assim que recebeu a notícia da morte de Pelé, vítima de um câncer de cólon, Didi fechou o salão. Não havia motivo nem ânimo para trabalhar.
"O Didi perdeu um grande amigo e um grande cliente", define o acanhado cabeleireiro, de fala mansa, se referindo a si mesmo na terceira pessoa. "O Brasil e o mundo perderam um símbolo muito grande. Ele deixou muita saudade".
Em alguns momentos, a fala quase não sai. Didi quer falar, mas às vezes não consegue. Dói para ele saber que não terá mais visitas do cliente fiel. "Tenho uma lembrança histórica. Ele sentava aqui comigo. Mexe muito com a gente a morte dele". E o que os dois conversavam no salão? "Falávamos de futebol".
Carlos Alberto Correia, o cliente que esperou por mais de duas horas, enfim ouviu as histórias de Didi com Pelé e também contou as suas. "Me tornei santista por causa do uniforme branco. Não foi nem por causa do Pelé", comentou.
Para ele, é inegável que Pelé seria hoje, com a estrutura a que dispõe os jogadores, um atleta ainda mais completo. "O Pelé jogava com prego cutucando a sola do pé, a meia caindo amarrada com barbante, chutava com as chuteiras pesadas a bola de capotão. Você chegava a ficar tonto depois de cabecear a bola", narra.
"Imagina se o Pelé tivesse hotel de luxo, fisioterapia, nutricionista? Hoje a bola é uma bexiga", compara. Na segunda-feira, 2, ele será um dos milhares de fãs a pisar no gramado da Vila Belmiro para dar o último adeus ao Rei. O caixão estará no centro do campo. "Vou no velório do Edson porque o Pelé é eterno".