Adentrar a sala de ensaio de qualquer artista experiente é estar entre a fascinação do bastidor e a percepção do inconveniente. A longa experiência de diretores teatrais, como Marcio Aurelio, costuma ser construída durante meses no subterrâneo, para criar uma única obra. Na contramão de políticos e influenciadores digitais do País, não há selfies ou transmissões ao vivo que deem conta da construção de um trabalho que nasce para ser público. Assim, não há como antecipar aplausos para uma sala de ensaio.
Heather, espetáculo que estreia neste sábado, 1º, no Teatro Cultura Inglesa, trata das mesmas brechas e segredos dos bastidores. A peça dirigida por Marcio Aurelio faz uma interessante incursão no texto do dramaturgo inglês Thomas Eccleshare, com a Cia Razões Inversas.
À primeira vista, é preciso apenas dizer que a peça investiga os conflitos entre artistas, suas obras e a recepção do público. “A história é sobre uma escritora de livros infantojuvenis que vive reclusa. Sua relação com o editor muda diante do sucesso das publicações”, aponta o diretor.
O velho ditado de não se julgar um livro pela capa perde sentido aqui quando escândalos envolvendo os autores colocam suas obras contra a parede. Não faltam exemplos. Por outro lado, os bastidores nunca foram tão fascinantes para os fãs.
No caso da literatura, essa sensação pode ser menos espetacular. A rotina de escritores não é glamourosa e, como no teatro, não nasceu para a tela dos celulares. Mas nada disso garante sossego, por exemplo, ao autor de Game of Thrones. A ameaça de que George R. R. Martin não consiga terminar sua saga de gelo e fogo, por questões de saúde, criou nos fãs o pavor de que o portal da fantasia possa se fechar para sempre, ou como quando Harry Potter dá de cara com a parede dura da Plataforma 9¾. “A própria escritora J. K. Rowling passou por essa pressão e perseguição por parte dos fãs quando sua saga começou a dar certo. Eles querem sempre mais”, lembra a atriz Laís Marques, que vive a personagem-título da peça. “Por um tempo, ela até chegou a usar pseudônimos, mas eles foram sendo descobertos um a um.”
É nesse intervalo entre a fome dos fãs e a vontade de camuflar identidades que o texto de Eccleshare se apoia. Ele cria um tipo de suspense cheio de pistas falsas que servem como grandes surpresas na encenação de Aurelio. O diretor segue a pesquisa iniciada lá no início da companhia Razões Inversas, em 1990, mas é Agreste (2004) que vem à mente do ator Paulo Marcello, que interpreta o editor das publicações de Heather. “Desde o início, não queríamos representar personagens. Isso é muito difícil de conseguir, sem fugir da história ou das características do texto.” Em Agreste, ele esteve no palco ao lado de João Carlos Andreazza, na peça de Newton Moreno, no papel de um – diferente – casal de lavradores. “No fim da peça, muitas pessoas ficavam chocadas com a revelação trazida na identidade do casal”, explica. “O texto de Eccleshare”, ele justifica, “nos permite um intercâmbio muito interessante entre personagens e estilos de texto.”
No ensaio acompanhado pela reportagem, Heather não foge de uma história que pode ser perfeitamente real e aposta em um estilo de dramaturgia dividido em blocos. Para Aurelio, trata-se de uma escrita que “tem uma retórica autônoma”. “Na primeira parte, acompanhamos a conversa da escritora e do editor, a seguir eles se conhecem pessoalmente e, na última parte, testemunhamos um trecho do livro inédito. É pura imaginação.”
De fato, é impossível não lembrar dos capítulos mágicos de Harry Potter, com batalhas de varinhas, faíscas metálicas voando e destruição ao redor. Laís sugere ao público atenção a todos os detalhes, até mesmo ao trecho de caráter mais narrativo e de invenção ficcional. “É como estar na cabeça de um artista e compreender suas motivações e para onde seus sentimentos apontam, mesmo que seja para as sombras. Pode não ser muito agradável, mas é uma saída.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.