Se amplamente conhecida e divulgada em Portugal – versos seus estampam as paredes do oceanário de Lisboa -, a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), prêmio Camões de 1999, encontra menor eco no Brasil. Esse quadro pode mudar agora com três novas publicações brasileiras.
A primeira, já nas livrarias, é a antologia Coral e Outros Poemas (Companhia das Letras), organizada por Eucanaã Ferraz. Com textos de todos os livros lançados pela poeta portuguesa, alguns esparsos e outros inéditos, Ferraz entrega um panorama da sua poética – uma poesia que começa voltada para o mar, a natureza e a mitologia, mas que ao longo do tempo amplia sua embocadura para tratar de temas políticos, sociais e literários.
“No Brasil, a presença inexpressiva da obra de Sophia fora dos ambientes acadêmicos não é um caso isolado”, diz Eucanaã. “Também é escassa a presença de Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Alexandre ONeill, Gastão Cruz, para citar apenas alguns poetas esplêndidos. Mas é sempre hora de tentar reverter essa situação.”
Esta é a segunda coletânea de poemas de Sophia publicada no Brasil: em 2004, a mesma editora lançou Poemas Escolhidos, organizada por Vilma Arêas. Dois anos depois, Maria Bethânia – célebre divulgadora da poesia portuguesa no Brasil – lançou o disco Mar de Sophia, em que intercala uma trilha rítmica irresistível de Naná Vasconcelos com poemas de Sophia e outras composições.
“Parti dos poemas dela porque são lindíssimos no meu entender e com uma intimidade com o mar que nunca vi numa mulher”, disse Bethânia ao jornal O Estado de S.Paulo no lançamento do disco.
A antologia segue o texto fixado na Obra Poética, lançada em Portugal em 2015 pela Assírio & Alvim e que também chega este ano ainda às livrarias brasileiras pela editora Tinta da China, numa edição com mais de mil páginas e prefácio de Maria Andresen de Sousa Tavares, filha e também poeta (o livro é organizado por Carlos Mendes de Sousa, e considera as mudanças feitas pela poeta em sua obra).
O terceiro livro é uma reunião de ensaios. Sophia: Singular Plural (7Letras, ainda sem data de publicação) é organizado pela professora de literatura portuguesa da USP, Paola Poma, e trará textos inéditos de críticos como Leonardo Gandolfi, Nuno Júdice e Maria Lúcia Homem, uma entrevista com o artista plástico e fotógrafo Fernando Lemos (autor da foto que ilustra esta página) e a reedição do ensaio seminal de Eduardo Lourenço, Para Um Retrato de Sophia.
“Parece que a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen se ressente de um certo preconceito da crítica em ter de se defrontar com uma autora que privilegia uma dicção pautada no imaginário grego em que a inteireza, positividade e concretude são as linhas de força de sua poesia”, avalia Poma.
Com sintaxe direta e palavras simples, os poemas surpreendem pela contraposição de imagens, ar misterioso e voz coesa que permanece entre o primeiro e o último livro. Qual seria, assim, o elemento central desse corpo poético?
“Seu ardor e integridade (Exata é a recusa / E puro é o nojo), sua religiosidade radical no melhor sentido de religação com as coisas, a natureza e o mundo dos homens”, opina a escritora Vilma Arêas.
“Talvez seja a frontalidade com que busca pensar o mundo, o homem e a própria poesia, daí a sua radicalidade e coragem”, diz Paola Poma.
“Acho que justamente essa consciência da vida como algo incompleto e a consequente procura pelas coisas inteiras: as praias, o mar, o jardim, o mundo grego clássico, a própria poesia”, diz Eucanaã.
Mas ele ressalva: “A natureza não é um quadro externo, estático, algo a ser simplesmente contemplado”. Para o organizador de Coral e Outros Poemas, a poesia de Sophia sempre foi marcada pelo desejo de ir contra a divisão e o horror, ainda que se reconheça frágil. “É um princípio político, portanto. E, aos poucos, os livros foram trazendo à tona o quadro social e político mais imediato, deixando à mostra o quanto a ética e a moral sempre estiveram no centro daquela escrita.”
Nascida no Porto em 1919, Sophia de Mello Breyner Andresen teve criação aristocrática e viveu a infância perto do mar. A religiosidade cristã nunca lhe abandonou, embora um elemento pagão também habite sua obra poética. Seu primeiro livro, Poesia, é de 1944, escrito durante a Guerra, e começa assim: “Apesar das ruínas e da morte” (“A escrita de Sophia nunca deixará de partir desse apesar de”, escreve Eucanaã na apresentação da antologia).
Nos anos seguintes ela confirma a vocação liberal ao se tornar militante contra a ditadura do Estado Novo português (“Com fúria e raiva acuso o demagogo / E o seu capitalismo das palavras”, inicia um poema de 1974). É eleita deputada constituinte em 1975 após a Revolução dos Cravos.
“Era uma mulher corajosa”, diz Vilma Arêas. “Em 1968, quando vivi em Lisboa, ouvi muitas conferências que ela apaixonadamente proferiu contra o regime salazarista, fazendo os ouvintes se arrepiarem de medo e admiração.”
Antes, em 1966, ela visita o Brasil. Amiga de Murilo Mendes, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto (que influenciou de maneira direta pelo menos um livro inteiro de Sophia, O Cristo Cigano, de 1961), dedicou vários poemas ao País.
Em Coral…, estão incluídos cinco textos em prosa, intitulados aqui Arte Poética. Neles, Sophia de Mello dá pistas do seu método de trabalho, mas, além disso, da própria estética que comanda sua produção artística. “O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. (…) Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.