"Eu sou um pouco anarquista", diz Eliane Coelho, não sem deixar escapar um leve sorriso. E a qualidade, ela acredita, tem tudo a ver com uma peça como o Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg, que a soprano brasileira acaba de gravar – um vídeo que será apresentado amanhã pelas redes sociais do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
"É uma mistura de tudo, canto, fala, música, teatro. Não sinto necessidade de classificar a peça, apenas de fazer de acordo com o meu momento. O estudo é um trabalho intelectual, mas na hora da interpretação é necessário deixar o rio correr, deixar a emoção aflorar, colorir o texto de acordo com o que temos dentro de nós", diz.
O Pierrot Lunaire foi concluído por Schoenberg em 1912, a partir de texto de Albert Giraud. São 21 poemas, que dialogam com o universo da commedia dellarte mas à luz da passagem do século 19 para o século 20, em uma linguagem simbolista por meio da qual se fala de amor, sexo, religião, violência, morte. "São muitos os caminhos para se interpretar a peça e isso faz dela tão interessante. A mistura de elementos possibilita que sempre encontremos novas facetas", explica a artista.
O espetáculo contou com direção cênica de Julianna Santos e direção musical de Priscila Bonfim. Integrou um tríptico dedicado às mulheres idealizado pelo diretor artístico do Municipal carioca, o maestro Ira Levin, que já teve obras de Haydn e Händel. E, de quebra, celebra os 70 anos de Eliane Coelho.
Setenta anos de vida, quase cinquenta de uma carreira na qual se colocou como a grande soprano brasileira de sua geração. Nos anos 1970, deixou o Brasil em direção à Europa e, depois de estudar e trabalhar na Alemanha, seguiu para a Áustria, onde integrou o elenco da Ópera de Viena. Lá, recebeu em 1998 o título de Kammersängerin, dado a artistas que desenvolveram trajetórias especiais na relação com a companhia.
Nos últimos anos, de volta ao Brasil, ela segue presente em palcos como o Municipal do Rio de Janeiro, o Festival Amazonas ou o Theatro São Pedro, em São Paulo, onde recentemente realizou performances memoráveis nas óperas Jenufa e O Caso Makropulos, de Leos Janácek. E também tem se dedicado ao repertório de canções, em especial com o pianista Gustavo Carvalho.
"O meu interesse por esse repertório sempre existiu. Desde que, jovenzinha, assisti a um recital de Elisabeth Schwarzkopf no Rio de Janeiro. Não entendi uma palavra do que ela cantava, mas fiquei impressionadíssima", ela conta. "Na Alemanha, tive ainda mais acesso a esta música. Cantei muito com o Ensemble Neue Musik, que tinha um repertório muito vasto, com recitais com obras de Schoenberg, John Cage, Charles Ives, Ravel. Isso me deu familiaridade com a música moderna. Meus compositores são Richard Strauss e Hugo Wolf, Schoenberg, Berg, Zemlinsky."
Para ela, o fascínio vem da capacidade de, em uma pequena canção, encontrar toda uma história de vida. "Cada canção é uma ópera, um destino, um drama", ela diz, ressaltando o prazer do trabalho com Carvalho. "Gostamos de encontrar caminhos diferentes, de nos aprofundar na interpretação e isso é um enorme prazer."
E esse mergulho nas obras interpretadas tem sido uma constante em sua trajetória – e, por isso mesmo, ela diz não sentir a necessidade de fazer balanços no momento em que completa 70 anos. "Sempre fui muito severa comigo, sempre fiz balanços depois de cada apresentação, de cada ensaio. Para tentar encontrar caminhos melhores, fazer correções, entender melhor o que faço e o que interpreto para poder me comunicar melhor com o meu público. Isso existiu em toda a minha vida e sei que continuará a existir."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>