É só dar uma passada de olhos pelo Twitter para aparecer alguém reclamando, ao falar de entretenimento e cultura: "Hoje em dia, tudo é político!".
Como esse aqui: "Eu sinto falta do tempo em que não havia uma pauta nas nossas séries de televisão ou filmes. Agora tudo é uma droga de uma declaração política".
E ainda: "Mas que diabos? Star Wars é sobre perdão, não uma declaração política sobre o fascismo".
Para essas pessoas, trazemos más notícias. Star Wars pode até ser sobre perdão – também. Mas não apenas. Pois vamos à sinopse de Uma Nova Esperança, lançado por George Lucas em 1977. A Princesa Leia (Carrie Fisher) é mantida refém pelas Forças Imperiais, sob as ordens do cruel Darth Vader. Mas, antes de ser capturada, mandou os esquemas da arma mortal do Império Galáctico, a Estrela da Morte, para a Aliança Rebelde. Os planos são descobertos por Luke Skywalker (Mark Hamill), que, com Han Solo (Harrison Ford), Chewbacca e os androides R2-D2 e C-3PO, tenta resgatar a princesa e ajudar os rebeldes a livrar a Galáxia da opressão e injustiça instauradas pelo Império.
O Império tinha claras referências ao nazi-fascismo. Os capacetes de Vader e dos Stormtroopers são baseados nos equipamentos dos soldados nazistas. Na época, ninguém achou nada demais porque, afinal, os nazistas eram vilões incontestáveis da vida real e do entretenimento – e, sim, George Lucas já falou que, na verdade, havia uma inspiração era mais recente, mais precisamente a Guerra do Vietnã, que teve a participação americana entre 1965 e 1975. Ou seja, era também contra o imperialismo americano.
Ok, então Star Wars estava, na verdade, falando de rebelião. Mas e O Senhor dos Anéis? Embora J.R.R. Tolkien tenha negado que a Segunda Guerra Mundial tenha sido uma inspiração, é inegável que ele foi influenciado por suas experiências traumáticas durante a Primeira Guerra Mundial.
Há uma força opressora que ameaça dominar e destruir toda a Terra-Média, e seus habitantes, de diversas raças, precisam deixar de lado as diferenças, desavenças, agendas e se unir para combater esse mal maior. Um mal maior que, mesmo derrotado, deixa um rastro de horror jamais apagado.
O Senhor dos Anéis influenciou diversos escritores de fantasia, de J.K. Rowling e sua série Harry Potter a George R.R. Martin e sua saga A Canção do Gelo e do Fogo, que virou a série de TV Game of Thrones, em que diversas casas nobres disputavam o Trono de Ferro do fictício continente de Westeros. Havia dragões e outros seres mágicos, mas o principal conflito era a luta contra um mal que ameaçava todos os humanos. Martin também se inspirou em eventos reais, como a Guerra das Duas Rosas, a disputa pelo trono inglês.
Corta para 2022, que parece ser o ano da fantasia na televisão. Simultaneamente, no ar, estão Andor, que se passa no universo Star Wars, Os Anéis de Poder, inspirado pelas anotações de Tolkien, e A Casa do Dragão, spin-off de Game of Thrones. Todas estão sendo criticadas por serem políticas demais, principalmente, por terem incluído a diversidade como pauta na escolha do elenco.
Mas não só. Alguns espectadores acham que Andor, que conta o passado do personagem Cassian Andor (Diego Luna), antes dos eventos do longa Rogue One: Uma História Star Wars, não tem nada a ver com o Star Wars original. A série fala do nascimento de um revolucionário, que vai dar a vida para conseguir aqueles esquemas escondidos pela Princesa Leia lá de Uma Nova Esperança. Ou seja, é o surgimento de um rebelde na luta contra o totalitarismo fascista do Império e está totalmente ligado à trilogia original. O quarto episódio já está disponível.
Os Anéis de Poder, cujo antepenúltimo episódio da primeira temporada entrou no ar na madrugada de sexta no Prime Video, traz, como a trilogia original de Peter Jackson para o cinema, a ameaça de Sauron, um servo do mal absoluto, Morgoth, e a tentativa de união perante esse perigo, liderada por Galadriel (Morfydd Clark). A guerra, aqui, parece necessária, mas, se seguir o espírito de Tolkien, não será sem consequências. A série também vem sinalizando que alguns poderão se render ao apelo fácil – populista – de Sauron.
Enquanto isso, na HBO e HBO Max, A Casa do Dragão vai para seu sétimo episódio no próximo domingo. Aqui, em vez de termos diversas famílias lutando pelo Trono de Ferro, temos uma só, os Targaryen (com alguns agregados, como os Hightower e os Velaryon). Mas as maquinações políticas existem. Rhaenyra (Emma DArcy) casou-se por política com seu primo Laenor (John Macmillan). Otto Hightower manipulou a filha Alicent e o rei para que se casassem.
Embora essas obras tenham se baseado em eventos históricos específicos, elas serviram de paralelo com o que estava acontecendo em diversos momentos. Star Wars tinha iconografia nazista, mas falava do imperialismo americano no Vietnã e colocava Palpatine como um clone de Richard Nixon, segundo o próprio George Lucas.
Curiosamente, foi adotado por grupos de extrema-direita mundo afora, assim como O Senhor dos Anéis, de quem a provável primeira-ministra da Itália Giorgia Meloni é fã. Na década de 1970, a obra de Tolkien também era admirada pelos hippies, que se identificavam com os hobbits, hoje vistos como um símbolo de um passado simples e melhor por pessoas ultraconservadoras.
Tudo isso mostra que essas obras são políticas, o que não significa partidárias. O problema é que, atualmente, defender que elfos, anões, hobbits e humanos (ou seja, pessoas negras, indígenas, brancas, LGBT, com deficiência) podem e devem ter direitos humanos básicos, inclusive de viver em liberdade, virou algo partidário.
E nem vamos falar das obras da Marvel ou de Jogos Vorazes ou de Round 6, ou de Bella, Ciao, que virou febre com A Casa de Papel, ser um hino antifascista.
O que todos esses livros, filmes e séries deixam claro é que uma sociedade despedaçada economicamente e socialmente, em que a vida do outro perdeu o valor, é terreno fértil para líderes mal-intencionados, antidemocráticos, opressores, que querem impor seu modo de vida aos outros. E que nem sempre essa ameaça é percebida por quem está no meio do processo. Mas que, invariavelmente, vale a pena lutar pelo que é certo: um mundo justo e livre para todos.