O ensaio na tarde de terça se constrói a partir dos detalhes. Em uma determinada passagem da Sinfonia nº 4 de Anton Bruckner, nem todos estão juntos; em outra, os músicos se equilibram entre a ideia de força e intensidade. “Isto é extremamente poderoso, mas está forte demais”, diz o maestro. A melodia, nas mãos das violas e, em seguida, dos violinos, se transforma. “Bom, bom” – e logo a música para uma vez mais. Uma pequena correção, uma, duas notas. “Ótimos, todos juntos.”
A cena poderia ser corriqueira. Mas não quando o maestro à frente da Osesp é o polonês Stanislaw Skrowaczewski. Dizer que, aos 91 anos, ele é uma lenda da regência não dá conta de explicar a importância de sua trajetória. São 80 anos de música – sua primeira apresentação pública, como pianista, foi aos 11 e, aos 13, ele já regia -, ao longo dos quais esteve à frente de todas as grandes orquestras do mundo. Estreou dezenas de obras; nos anos 60, fez a estreia em Paris e nos EUA de sinfonias de Shostakovich; e, ao mesmo tempo em que sempre apostou na diversidade de repertório, construiu a reputação de herdeiro de uma tradição que remonta a grandes nomes da regência do final do século 19 e início do século 20.
Em São Paulo, ele rege, esta semana, a quarta sinfonia de Bruckner e o concerto para violino de Berg; e, na semana que vem, o Concerto nº 27 de Mozart e a Sinfonia nº 2 de Brahms. “É um repertório que vai muito bem com minha sensibilidade artística”, diz ele em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S.Paulo, em seu camarim, após o ensaio. Mas logo ele leva a conversa para Bruckner.
Não é por acaso. Ele foi um dos primeiros maestros a gravar todas as sinfonias do compositor. “Talvez na Europa, nos países germânicos, suas sinfonias sempre tenham sido interpretadas, de uma forma ou de outra. Mas, quando cheguei aos Estados Unidos (ele se mudou para o país nos anos 1960), fiquei surpreso ao perceber que as principais orquestras não as conheciam. Eu lembro de receber em uma ligação do maestro George Szell me dizendo: acabei de tocar a sinfonia nº 3, é uma grande obra, inclua ela no seu repertório. Eu incluí e fico feliz de ter construído uma carreira em torno dessas sinfonias.”
Para Skrowaczewski, “tocar mal qualquer música é algo ruim”. “Mas há compositores que sofrem ainda mais quando mal tocados. Bruckner é um deles.
Maestros fazem tudo muito rápido, superficial. É preciso compreender o estilo e alcançar leituras mais transcendentais, espirituais, belas. E, quando falo em algo belo, estou me referindo a um ideal de beleza pura.”
Skrowaczewski testemunhou boa parte da história do século 20 – dentro e fora dos palcos. Conversar com ele é ter a chance de abrir uma porta privilegiada em direção ao período. Mas o maestro, depois de um dia de ensaios, pede que a conversa seja “o mais breve possível”. Resta uma última pergunta: como, após 80 anos no palco, mudou sua relação com a música? A resposta vem sem hesitação. “Quando você ouve três notas de uma peça de Mozart ou Beethoven, você percebe que está diante de algo especial, único. Eu passei a vida tentando explicar isso em palavras. E não consegui. Mas é um privilégio, depois de tanto tempo, continuar a procurar a resposta sobre o palco”, diz o maestro. E sorri. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.