O Supremo Tribunal Federal iniciou ontem o julgamento que determinará se existe no País o chamado "direito ao esquecimento", no qual uma pessoa poderia proibir a exibição ou publicação de um fato ou acontecimento antigo, ainda que verdadeiro, para preservar a sua intimidade. O caso tem repercussão geral e poderá criar precedentes em relação à liberdade de acesso à informação e à atividade da imprensa, além de modular as decisões judiciais sobre o assunto em todo o País.
O ministro Dias Toffoli, relator do caso, iniciou a leitura de seu voto, mas deixou a conclusão para a sessão de hoje. Durante a sua fala, Toffoli fez uma avaliação histórica sobre o tema e não indicou seu posicionamento.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou contra o reconhecimento do direito ao esquecimento. "Se o que hoje é livre de se dizer, o tempo passará e essa liberdade caducará? Como se ela tivesse prazo de validade em uma sociedade livre e democrática?", questionou o vice-procurador-geral Humberto Jacques de Medeiros.
O caso concreto envolve a ação movida pela família de Aída Curi, assassinada em 1958 no Rio de Janeiro. O crime foi amplamente noticiado à época e, em 2004, o programa Linha Direta, da TV Globo, reconstituiu os acontecimentos. Inicialmente, a família de Curi solicitou que o episódio não fosse ao ar e, após a sua exibição, acionou a Justiça em busca de indenizações e pelo "direito ao esquecimento" do caso.
O debate, porém, esbarra na liberdade de expressão, direito à informação e à atividade da imprensa. Organizações que discutem estes temas se manifestaram no Supremo pelo risco de que o direito ao esquecimento, uma vez reconhecido, seja usado por políticos e figuras públicas para retirar conteúdos negativos sobre suas carreiras por meio de ações judiciais.
"Caso o direito ao esquecimento seja reconhecido, a decisão irá beneficiar as pessoas que tentam esconder informação da população", afirmou a advogada Taís Gasparian, que falou em nome da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
O advogado que representa a família Curi, Roberto Algranti Filho, afirmou que o programa sobre o caso Aída Curi disse que a família busca não ter o crime relembrado sob risco de causar "perpetuação de uma dor". "Refuto o argumento baseado de que políticos tentarão apagar seus malfeitos. Eles poderão até tentar, mas dificilmente conseguirão o direito ao esquecimento dada a relevância social e política do controle das atividades políticas por parte da imprensa", afirmou.
O advogado Gustavo Binenbojm, que representou a TV Globo, afirmou ao Supremo que o reconhecimento do direito ao esquecimento equivaleria a uma "amnésia coletiva". "A Constituição prevê a liberdade de informar e de ser informado, independente de censura ou licença de quem quer que seja, de vítimas ou algozes, de autoridades públicas ou de pessoas privadas", afirmou.
Ausências. A sessão será retomada hoje com o voto de Toffoli e dos demais ministros da Corte. O ministro Luís Roberto Barroso já se declarou suspeito e não se manifestará no caso. O ministro Marco Aurélio Mello, que está internado após passar por uma cirurgia no ombro, também não deverá participar da sessão.
Durante o julgamento, entidades de direito defenderam o reconhecimento do "direito ao esquecimento" no Brasil. Segundo Anderson Schreiber, do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), a ausência de uma decisão do Supremo deixaria o direito à privacidade "sem qualquer proteção". Ele citou o caso de pessoas que são denunciadas e, no final do processo, inocentadas e absolvidas pela Justiça.
<b>Caso Aída Curi reabre debate</b>
<b>Direito ao esquecimento</b>
O direito ao esquecimento diz respeito às pessoas que buscam, por meio da Justiça, terem seus nomes ou imagens apagadas de páginas, sites ou mecanismos de busca na internet, alegando constrangimento ou sofrimento.
<b>Legislação</b>
Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro não possuir uma norma específica sobre o assunto, os cidadãos que desejam ser "esquecidos" citam um trecho da Constituição Federal segundo o qual é assegurado "o direito à intimidade, à vida privada e à imagem das pessoas".
<b>Caso Aída Curi</b>
Em 2004, o programa Linha Direta Justiça, da TV Globo, reviveu a história de Aída Curi (foto), jovem de 18 anos que foi abusada sexualmente e morta ao ser atirada de um prédio em Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1958. Após serem avisados pela rede de televisão de que a história iria ao ar, a família da vítima notificou a empresa pedindo a não exibição do episódio, mas o apelo não foi atendido. De acordo com o advogado da família, o programa reabriu "feridas emocionais muito profundas".
<b>Supremo</b>
A discussão na Corte é norteada pelo caso de Aída, cujo julgamento dos acusados teve grande repercussão. Mais de seis décadas depois, a família da vítima defende o "esquecimento" do episódio. O relator do caso no tribunal é o ministro Dias Toffoli.
<b>Polêmica</b>
O debate sobre o assunto, no entanto, esbarra no conflito entre liberdade de expressão e liberdade de acesso à informação e o direito à intimidade e à privacidade. Um dos questionamentos feitos é se deve haver um "limite" para o dever de informar.
<b>Precedente</b>
Em um dos casos mais emblemáticos sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça ordenou, em 2018, que buscadores desvinculassem o nome de uma promotora de Justiça do Rio a notícias sobre uma fraude em um concurso para o Tribunal de Justiça do Estado. Como a promotora foi inocentada, o STJ considerou que as informações tiveram a relevância "superada pelo decurso do tempo".
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>