Estadão

Tesouro propõe regra para substituir teto de gastos com base na dívida pública

Técnicos do Tesouro Nacional concluíram o desenho de uma reforma para a criação de um novo arcabouço das regras fiscais brasileiras. Com a proposta, publicada nesta segunda-feira, 14, na série "Textos para Discussão" do órgão no portal do Tesouro na internet, o órgão marca posição na defesa de uma regra de controle de gastos para o próximo governo.

Escrita por oito técnicos do órgão, o texto propõe uma regra de despesa para substituir o atual teto de gastos, vinculada a uma âncora fiscal que tem a dívida como referência. Enquanto o teto de gastos limita o aumento das despesas do governo à variação da inflação, a proposta do Tesouro estabelece um limite para o crescimento real (acima da inflação) da despesa da União, condicionado ao nível e à trajetória da Dívida Líquida do Governo Geral (DLGG). Em setembro, ela estava em 59% do PIB.

A proposta é divulgada no momento da transição para o terceiro mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que prometeu na campanha revogar o teto de gastos (regra constitucional que limita o crescimento das despesas a cada ano à variação da inflação).

<b>Entenda a proposta</b>

O ponto central da proposta é: quanto maior o nível de dívida pública, menor será a taxa de crescimento real (acima da inflação) das despesas. Se a dívida estiver em trajetória crescente, o limite para a despesa será menor do que se a dívida estiver em trajetória declinante.

Pela proposta do Tesouro, os gastos do governo federal poderiam crescer acima da inflação em até 2,5% no cenário mais favorável. Esse patamar mais alto de alta dos gastos só poderia ocorrer com a dívida abaixo de 45%, trajetória decrescente e esforço para aumentar a arrecadação e fazer bons resultados primários para evitar uma farra de expansão de despesas.

Dado um cenário fiscal em que a dívida líquida se encontre acima de 55% do Produto Interno Bruto (PIB) — como agora, por exemplo –, haveria possibilidade de um crescimento real de 0,5% ao ano das despesas no caso do endividamento público estar em trajetória de queda. Se a dívida estiver em alta, não poderia haver crescimento real das despesas.

Para um patamar da dívida entre 45% e 55% do PIB, o crescimento real da despesa poderia ser de 0,5% (com alta da dívida da dívida) ou de 1% (com redução da dívida). Para dívidas abaixo de 45% do PIB, seria permitido crescimento real da despesa de 1% ou de 2% ao ano.

Além desses cenários, o modelo prevê uma "bonificação" no limite de crescimento da despesa de 0,5%. O bônus seria concedido quando o resultado primário das contas do governo for positivo e se encontrar em trajetória ascendente ou quando estiver acima de um determinado patamar. Se a meta fiscal não for cumprida, o Ministério da Economia teria de dar explicações, como ocorre com o Banco Central no sistema de metas de inflação. O custo neste caso é reputacional: não haveria punição aos gestores em caso de descumprimento da meta fiscal.

A reforma estabelece que a meta de resultado primário (receitas menos despesas, exceto o pagamento dos juros da dívida pública) se transforme num mecanismo de incentivo para manutenção do esforço de arrecadação. A ideia dos autores da proposta é que esse incentivo permita maiores taxas de crescimento da despesa em caso de bons resultados.

A proposta acaba com o contingenciamento (bloqueio) de despesas do orçamento, que tanta dor de cabeça tem dado à execução dos programas e políticas públicas dos ministérios.

A meta de resultado primário perde sua configuração atual, na qual há contingenciamento para seu cumprimento ou sanção em caso de descumprimento.

A proposta do Tesouro começou a ser escrita antes mesmo da eleição para inserir o órgão na discussão da proposta com o objetivo de fortalecer a sustentabilidade fiscal e orientar a política fiscal para o médio prazo.

O arcabouço conta ainda com gatilhos, que visam reduzir o ritmo de crescimento das despesas obrigatórias. Gatilhos são medidas adotadas pelo governo para conter a aceleração dos gastos.

O novo arcabouço também prevê cláusulas de escape — saídas para gastar mais em caso de cenários econômicos adversos, como ocorreu na pandemia da covid-19 e a guerra da Ucrânia, sem que seja preciso alterar a Constituição para suspender as regras em vigor.

Os autores destacam que a proposta pretende redirecionar a ênfase do planejamento fiscal brasileiro do curto para o médio prazo, por meio de comunicação clara da estratégia da política fiscal, sustentada por projeções críveis, transparentes e detalhadas. Com essa mudança de estratégia, eles esperam uma ancoragem das expectativas com impacto positivo sobre o custo de financiamento do governo.

Na proposta dos técnicos do Tesouro, há uma previsão para que o crescimento real da despesa seja fixado a cada dois anos. O objetivo é dar maior previsibilidade e capacidade de planejamento à política fiscal em comparação à fixação por apenas um exercício.

A avaliação é de que essa proposta facilitaria a formação e a ancoragem de expectativas, além de trazer maior estabilidade para a execução das despesas públicas no médio prazo, em especial dos investimentos.

Os técnicos reforçam que o prazo de dois anos reduz a possibilidade de que alterações na trajetória e no nível de dívida que sejam pontuais e não necessariamente decorrentes da gestão fiscal, por exemplo, ocasionadas pela flutuação macroeconômica.

<b>O que defende a equipe de Lula?</b>

Com a publicação da proposta de uma reforma do arcabouço fiscal, os técnicos do Tesouro Nacional marcam posição na defesa de uma regra de controle das despesas pelo próximo governo. Dados do Fundo Monetário Internacional até 2021 apontam que pelo menos três quartos das economias avançadas tinham regras de controle das despesas.

A definição de um novo arcabouço fiscal para ser encaminhado ao Congresso só seria feita a partir de 2023. Por enquanto, o governo de transição está negociando uma regra de exceção ao teto de gastos com a PEC da Transição para permitir o aumento das despesas em 2023 fora do teto de gastos, que continua em vigor.

Para o futuro das regras fiscais, a definição de uma regra de controle de gastos será um dos principais pontos do debate. Como mostrou o Estadão, o tema divide os economistas do partido. Uma ala dos aliados de Lula, inclusive ele próprio, avalia que não é preciso de um limite para gastos, mas sim reforçar a política de obtenção de resultados primário na direção de superávits primários. Já outra ala avalia que será preciso definir uma regra de gastos que permita o crescimento acima da inflação das despesas para sinalizar uma trajetória de sustentabilidade das contas públicas.

<b>Engarrafamento de regras</b>

Apesar de o Brasil ter várias regras fiscais, a conclusão é de que o arcabouço atual não tem sido suficiente para garantir a sustentabilidade das contas públicas. Além das três principais regras fiscais — regra de ouro, meta fiscal de teto de gastos –, há outros regramentos que tratam, por exemplo, de despesas de pessoal, despesas obrigatórias e renúncias de receitas. Mas muitas delas se mostraram pouco efetivas.

Criada no governo Temer, o teto de gastos foi perdendo credibilidade após ter sido furado ao longo dos últimos anos com sucessivas mudanças na Constituição para acomodar aumento de despesas.

Na avaliação do Tesouro, a despeito de a regra de meta fiscal ter sido a principal âncora fiscal do Brasil entre os anos de 2000 e 2013, foram encontradas fragilidades nesse modelo. A preocupação é atual porque uma ala do PT quer acabar com o teto de gastos e manter a meta fiscal, sem colocar uma regra de controle de despesas. Já a regra de ouro impede o governo de se endividar para pagar despesas correntes, como a de pessoal.

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