Se, na literatura, Franz Kafka (1883-1924) ficou conhecido pelo uso da estética do absurdo, no teatro a característica pode ser associada ao dramaturgo franco-romeno Eugène Ionesco (1909-1994). Considerado, ao lado do irlandês Samuel Beckett (1906-1989) o pai do teatro do absurdo, Ionesco escreveu peças que expõem o ridículo das situações banais.
Parte de sua obra poderá ser vista nos espetáculos Ionesco Suíte e O Rinoceronte, que a companhia do Théâtre de la Ville de Paris traz ao Brasil. Após passar por Belo Horizonte e pelo Rio, as montagens serão apresentadas no Sesc Pinheiros, nesta terça, 2, e na quinta, 4.
“Ionesco é um importante autor que fala sobre a transformação humana, física e ideológica”, diz o diretor da companhia, o franco-português Emmanuel Demarcy-Mota. Ele conta que a obra do dramaturgo o fascina desde os tempos em que ele cursava o ensino médio na França.
A pesquisa do diretor sobre Ionesco começou há mais de dez anos, quando ele montou a peça O Rinoceronte pela primeira vez (em 2004). A montagem teve algumas alterações e reestreou em 2011. “Gosto de criar modificações em um espetáculo de vida tão longa”, diz. É esta última versão que o grupo encena no Brasil. As mudanças incluem a exibição da imagem do animal, que não aparecia na primeira montagem, e a introdução de um trecho do romance O Solitário – um dos poucos de autoria de Ionesco.
Escrita em 1959, O Rinoceronte conta a história de um vilarejo que tem, gradualmente e sem explicação, sua população quase toda transformada em rinocerontes. Apenas um de seus habitantes, o personagem Bérenger, resiste à mutação, mantendo-se humano. Tendo esse enredo como pano de fundo, Ionesco toca em questões como a solidão humana e a aceitação das diferenças.
Demarcy-Mota conta que decidiu montar a peça por ter se interessado pelo seu teor político. “Ionesco escreve depois da 2ª Guerra Mundial e ele relaciona o rinoceronte ao nazismo e ao fascismo”, diz. “É a uniformização do ser humano e do mundo. Como pode haver a perda de liberdade de pensamento? Como todos os homens acabam seguindo o mesmo movimento, que vai contra a liberdade?”, pergunta, apontando que, hoje, a peça permite ao público refletir sobre a capacidade de resistência em um mundo capitalista, racista e exclusivo.
Ionesco Suíte, que estreou em 2005, é uma junção de cinco peças escritas pelo dramaturgo: Jacques ou A Submissão, Delírio a Dois, A Cantora Careca, Exercícios de Conversação e Dicção Francesa para Estudantes Americanos e A Lição. O trabalho, que evolui à medida que a companhia aprimora os estudos sobre Ionesco, trata de assuntos como as convenções sociais e o medo de se expressar.
Para criar Ionesco Suíte, Demarcy-Mota pediu a cada ator de seu elenco que lesse dez peças do dramaturgo e escolhesse as passagens mais interessantes. “O resultado foi a peça, que tem pouco mais de uma hora e estabelece uma relação próxima entre os atores e os espectadores”, afirma. Diferentemente de O Rinoceronte, que será executada no grande palco do Teatro Paulo Autran, Ionesco Suíte será encenada em um espaço menor, no segundo andar do Sesc Pinheiros.
Segundo o diretor, apesar de ser uma junção de excertos, o espetáculo tem continuidade e homogeneidade de temas. Dramas e oposições da vida se passam em momentos coletivos – como jantares, comemorações, festas – sem que o espectador, necessariamente, perceba as mudanças de texto.
O grupo
Criada em 1993, a companhia dirigida por Demarcy-Mota nasceu como Compagnie des Milles Fontaines, que remete à cidade portuguesa de Mil Fontes, onde surgiu a ideia de fundar o grupo. Em 2008, quando foi nomeado diretor do Théâtre de la Ville de Paris, ele decidiu transformar o coletivo em residente da instituição, que, até então, não tinha nenhuma companhia.
Demarcy-Mota foi chamado para coordenar um projeto de internacionalização do teatro e de ampliação do contato da instituição com o público jovem. Segundo ele, hoje o Théâtre de la Ville é a companhia francesa que mais viaja pelo mundo, superando as internacionalmente conhecidas Théâtre du Soleil e a Comédie Française. Nos últimos anos, o grupo se apresentou em 24 países – esta é a primeira visita ao Brasil.