Quando a argentina Mariana Enriquez empunha a caneta para escrever sua ficção, parece que as nuvens escurecem, o dia se dissipa, o medo se espalha. Se o turista está habituado a visitar uma Buenos Aires de largas avenidas, cafés acolhedores, cinemas e teatros abarrotados, tango ressoando a cada esquina, a cidade que sai da imaginação da escritora de 44 anos é marcada por casas e ruas abandonadas, frequentadas por prostitutas, viciados, crianças solitárias. Pior: nos contos de Mariana, é comum aparecerem corpos mutilados, pessoas que simplesmente desaparecem, luzes que se acendem e se apagam sozinhas. É esse universo sombrio que povoa as curtas histórias de “As Coisas Que Perdemos no Fogo”, livro lançado agora pela Intrínseca.
Em uma literatura tão notadamente marcada pelo romance policial como a argentina, Mariana Enriquez prefere o terror ou, melhor dizendo, o horror. “Trata-se de um gênero que me agrada muito”, conta ela, por telefone, desde a capital argentina, voz doce e sossegada. “Porque é o que oferece mais risco para um autor, que dispõe de liberdade para utilizar uma linguagem muito mais apta para entender a vida moderna do que outros gêneros aparentemente mais realistas. Você pode fazer o que quiser em um conto de terror.”
Não há dúvida alguma quanto a isso. Basta abrir seu livro – por exemplo, no conto “O Quintal do Vizinho”. Ali, um casal se muda para uma casa. Quando tudo parece feliz, a mulher descobre, no terraço do vizinho, a perna acorrentada de um menino. E, se o leitor resistiu bem até esse ponto, seus cabelos ficarão em pé na cena final, que envolve uma gata, o menino e a mulher. Terror puro. Mariana ri das observações. “Pois eu me divirto muito ao escrever isso”, comenta, sorrindo. O fato é que a Argentina constrói uma tradição de suspense ainda incomum na América Latina, mas já bem difundida na Europa e nos Estados Unidos.
Não à toa, Mariana é fã de Stephen King, americano que divide a opinião da crítica, mas é amado por uma imensa legião de fãs. “Seu estilo de escrita me encanta. King tem uma estreita relação com o entretenimento a partir de sua linguagem cativante, e seus temas são cada vez mais atemporais. Aprendo muito com ele. Veja Carrie, a Estranha, que é de 1974: fala de uma menina que pode matar com o poder da mente, mas que já sofre bullying das colegas por ainda não saber lidar com o próprio corpo e cuja mãe é um exemplo de fanatismo religioso. São assuntos muito atuais. E como termina? Com um massacre escolar. Esse é o horror real, que se relaciona diretamente com o cotidiano e corre em paralelo com o sobrenatural. King trata disso de forma sutil – seus personagens são pessoais normais, mas que chegam facilmente ao sobrenatural.”
Se deixar, Mariana se estende por várias horas avaliando com entusiasmo a obra do americano. Mas sua análise é irresistível: “Em O Iluminado, o que se sobressai é o terror doméstico, pois a família é normal, igual a muitas outras, temente da morte, mas cuja vida se transforma em um inferno quando se instala naquele hotel. Isso me atrai. E, ao ler o romance, senti pela primeira vez uma sensação física despertada pela literatura. A escrita me provocou um medo impactante e isso é fascinante”.
Mariana cresceu em uma família de classe média argentina e hoje é jornalista, trabalhando como subeditora do jornal Página 12. Ela reconhece que essa proximidade com a realidade favorece sua escrita, apontada como uma das principais da nova geração literária de seu país. “As histórias dos meus contos são próximas a mim, o que não é de se estranhar, pois, na Argentina, sobretudo com Julio Cortázar e Ernesto Sabato, o fantástico é mais escuro, mais terreno, até romper com o cotidiano e chegar ao terror. Na América Latina, a violência que encontramos nas ruas permite estar mais perto do terror. Também as diferenças sociais criam uma geografia nas grandes cidades em que a exclusão é escondida, periférica. Onde também as mulheres são vítimas de uma violência, o que me preocupa e me inspira – daí todos os meus contos terem protagonistas femininas, mulheres com vidas confusas, algumas perversas, outras bondosas, mas todas complexas.”
Ao tratar da violência, Mariana se aproxima de um tema caro a países que sofreram com governos ditatoriais. Emergem daí o medo sufocado, o pavor provocado pelo desconhecimento, as cicatrizes ainda abertas. Mesmo que não tratem abertamente desse período, algumas histórias de Mariana passam perto – em “A Casa de Adela”, por exemplo, uma mulher some sem explicações dentro de uma casa abandonada, o que foi lido como alegoria aos desaparecidos durante os anos de chumbo. “Na Argentina, esse assunto continua mal resolvido. Ainda temos desaparecidos, que se transformam em fantasmas rodeando nosso cotidiano. Assim, escrevo contos de terror que também são políticos.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO
Autora: Mariana Enriquez
Trad.: José Geraldo Couto
Editora: Intrínseca (192 págs., R$ 39,90)