Mundo das Palavras

Tiririca: palhaçadas e analfabetismo

No Brasil, poucas pessoas se sentem representadas, de fato, nas Câmaras Municipais, nas Assembléias Estaduais, ou, no Congresso Nacional.


Na esfera do poder executivo existe o mesmo distanciamento entre eleitores e políticos. Quem reconhece em algum prefeito, algum governador, ou, algum presidente da República, um defensor de seus direitos?


 


Há uma carga imensa de desprezo devotada aos políticos pelos cidadãos brasileiros, em geral. Algo muito preocupante para quem preza a democracia, pois, revela tremenda ineficiência em nosso sistema de representação.


 


Quanto desprezo numa das últimas capas de uma revista de circulação nacional – a Época! Todo o espaço da página foi ocupado com a foto do rosto de um palhaço vestido com paletó e gravata. Debaixo da foto, o título ultrajante: “Tiririca, a cara do novo Congresso”. Segundo a revista, portanto, a elaboração das leis do Brasi1, nos próximos anos, ficará a cargo de centenas de pessoas que usaram qualquer tipo de recurso colocado a seu alcance para obter um cargo eletivo no Congresso. No caso de Tiririca, para obter cargos – no plural. Para ele e para outros quatro ou cinco candidatos sem eleitores suficientes, a serem beneficiados pelo chamado voto de legenda. Valendo-se do lirismo do circo, capaz de encantar as crianças, e, de tornar, por isto, gratos seus pais. Ou, simplesmente, do desejo de ver o circo eleitoral pegar fogo.


 


Aquela imagem exibida pela revista deve ter provocado desesperança nos brasileiros com idade, ou com informações suficientes, para a aquisição de consciência do número de pessoas mortas, exiladas ou presas, ao longo de duas décadas de ditadura militar, no país, na luta pelo direito de eleger seus representantes.


 


Este cenário de repulsa aos políticos impediu a consideração mais ampla da questão levantada pela própria Época: a da suspeita de analfabetismo de Tiririca. Tornou-se impossível a análise desta questão por outro ângulo que não fosse o do possível impedimento do palhaço de concorrer à eleição, posto que a constituição brasileira negaria este direito a ele, se fosse confirmado seu analfabetismo.


 


No contexto eleitoral, propício a sentimentos exaltados, se tornou impossível levantar uma pergunta relevante: o impedimento constitucional é justo? A simples apresentação desta pergunta já pareceria um gesto antecipado de defesa de Tiririca. E quem se disporia a correr o risco de parecer defensor de uma candidatura tão suspeita? 


 


Mas, é instigante poder pensar na pergunta. Ela se desdobra em outras. Na aprovação do impedimento constitucional foi levada em conta a possibilidade de o analfabeto, eventualmente, ser inteligente, justo, correto e sensível? Ou, houve a suposição de que o analfabetismo impede alguém de ter estas qualidades? Se houve, a suposição foi correta? Aquelas qualidades, acrescidas do apoio de assessores, não qualificam suficientemente um analfabeto?


 


É possível que, no nível mais profundo da decisão de aprovar o impedimento, tenham subsistido velhos preconceitos elitistas? Afinal, desde a Grécia Antiga, a participação na democracia não tem sido encarada como um privilégio de classes sociais superiores?


Quem sonha com um sistema de representação política no Brasil, justo e eficiente, não poderá afastar de sua mente estas indagações, quando a candidatura de Tiririca não estiver mais em pauta. Porém, ninguém se iluda: obter respostas definitivas para elas, certamente, não será algo fácil.


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP


 

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