Tribunais de Justiça de oito Estados apresentaram índices de até 100% de decisões favoráveis a governadores para livrá-los de garantir direitos fundamentais, como insumos e tratamento de saúde, aplicação de legislações ambientais e condições mínimas para a população carcerária. O dado é de um estudo da plataforma Justa, especializada em pesquisa sobre gestão do sistema de Justiça.
Os pesquisadores compilaram ao todo 424 decisões judiciais do ano de 2021. Segundo o estudo, chama a atenção o fato de que, ao passo em que incrementaram orçamentos e receberam até mesmo verbas extraordinárias para a folha de pagamento, as Cortes pouco ou quase nada obrigaram os governadores a solucionar questões urgentes. Dos Estados analisados, São Paulo, Bahia, Paraná e Tocantins contemplaram os tribunais com repasses adicionais, que, somados, chegam a mais de R$ 591 milhões.
O dinheiro chegou ao Judiciário local sem a aprovação das Assembleias Legislativas – ou seja, consistem em valores além dos previstos nos orçamentos anuais. Embora não tenham recebido recursos extras, Pará, Ceará e Goiás tiveram decisões analisadas pela Justa. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), também presente no levantamento, recebeu uma quantia menor, de R$ 1,6 milhão. Foram consideradas as maiores Cortes do País e ao menos um tribunal de cada uma das cinco regiões brasileiras.
As transferências para pagar a folha salarial dos TJs se dão com base em brechas nas leis orçamentárias. Em São Paulo, Bahia e Tocantins, mesmo em ano de pandemia, o orçamento foi incrementado.
De acordo com os pesquisadores da Justa, o alto índice de "governismo" das Cortes pode estar associado ao poder de barganha que governadores têm para negociar pautas corporativas da magistratura.
"A busca por mais recursos pelos TJs passa a ser um compromisso de gestão. E isso também é mais um elemento a gerar um modelo ineficaz para a proteção do interesse público", afirmou Luciana Zaffalon, diretora da Justa.
<b>Recurso</b>
O comportamento das Cortes em casos que forçavam o Estado a garantir direitos fundamentais foi analisado pela Justa com base em um levantamento de decisões sobre um recurso chamado suspensão de segurança, criado por lei em 1936, durante a ditadura Getúlio Vargas. O instrumento tinha como objetivo dar aos Estados a possibilidade de acionar diretamente as presidências dos TJs para derrubar decisões de primeira instância que eventualmente ferissem a segurança pública, a ordem e a saúde.
Em 1964, após o golpe militar, a lei foi alterada para que o recurso também pudesse ser usado para proteger a "economia pública". O estudo mostra que, ao lado da ordem pública, a economia foi o argumento mais adotado por presidentes das Cortes em favor dos governadores.
Em uma das decisões, a presidência do TJ-BA livrou o então governo de Rui Costa (PT) – hoje ministro da Casa Civil – de fazer adequações em um complexo para adolescentes. O Ministério Público havia movido uma ação civil pública, embasada em fotos e atas de inspeções, que mostravam, segundo a instituição, "abrigamento de adolescentes do sexo masculino e feminino em cela única", sem iluminação, tubulação de esgoto aberta e sem higienização. O pedido havia sido acolhido em primeira instância.
Em São Paulo, a presidência do TJ suspendeu a decisão de um juiz que ordenou a transferência de pacientes com covid-19 em um hospital de Lençóis Paulista, no interior, em razão da falta de insumos e medicamentos para intubação. O pedido havia sido feito pelo MP, que anexou documentos dos próprios hospitais sobre mortes de pacientes em razão da carência dos itens.
A primeira instância acolheu o pedido. Ao suspender a decisão, a presidência do TJ-SP destacou que a ordem foi "fruto da preocupação com o cenário" da covid. No entanto, a decisão "desconsiderou que as medidas necessárias à contenção da pandemia devem ser pensadas de forma coerente, coordenada e sistêmica, sob a imprescindível coordenação do Poder Executivo".
<b>Contato</b>
Professor de Direito Constitucional da Fundação Getulio Vargas, Roberto Dias afirmou que as suspensões de segurança são decididas especificamente pelos presidentes dos TJs, principais responsáveis pelo contato com o Estado em prol de pautas corporativas. "Surge uma suspeita de que pode ocorrer uma troca de favores entre as duas esferas de poder. Se não há esta relação, há ainda uma gravidade, porque esse tipo de comportamento abala a reputação das Cortes estaduais", disse.
O TJ-SP diz, em comunicado, que "não pode emitir nota ou opinião sobre questão jurisdicional". "Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos processos e seu livre convencimento", afirma. "Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos."
Procurados, os TJs da Bahia, do Tocantins e do Paraná não se manifestaram.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>