Às cinco da manhã, quando o despertador toca, ela se levanta moída, as dores adquiridas na jornada do dia anterior seguem ecoando por todo seu corpo. Ainda é noite. Seu nome não importa, onde vive tampouco. Vamos chamá-la de Maria, simplesmente. E imaginar seu calvário diário na capital paulista, mesmo que ele se repita em cada conglomerado urbano onde milhões de brasileiras dão início a um amargo cotidiano, tão bem descrito em uma única frase de canção que cantamos na juventude: “Todo dia ela faz tudo sempre igual”…
Um pedaço de pão e um café, requentados de ontem, são engolidos às pressas. O dinheiro anda curto e ela precisa se apressar, antes de sair tem que deixar o filho mais novo na casa da vizinha. Pagá-la para tomar conta do menino foi a única solução, não havia vaga para ele em nenhuma creche. Antes de sair, acorda a filha, só um pouco mais velha. A menina vai ter que se virar sozinha até a chegada da perua particular que a leva para a escola. O transporte gratuito, claro, também não está disponível para ela.
No ponto de ônibus, enquanto aguarda o primeiro dos dois que pega para chegar ao trabalho, nossa Maria se desespera, em busca de solução para uma conta que não fecha. As despesas são cada vez maiores, o dinheiro termina antes do que o mês, cuidar das crianças sozinha está ficando impossível. Ainda se o pai ajudasse… Mas o quê, até já se esqueceu dele: desde que se separou, por conta de toda sorte de violência que era obrigada a suportar silenciosamente, nunca mais viu seu rosto.
A angústia a domina durante todo trajeto. São quase três horas para percorrer cerca de 20 quilômetros, espremida entre dezenas de anônimos como ela, dos milhões que são obrigados a cruzar diariamente a cidade em busca do pão de cada dia. Quando chega ao destino, não é difícil imaginar como se sente. Haja coragem para enfrentar a jornada que a aguarda, muitas vezes pontuada por toda sorte de humilhações e assédios, crimes disfarçados de meros gracejos, típicos de um país machista por natureza e de legislação ainda frouxa.
Mas quando a jornada chega ao fim, os desafios não são menores. O sofrimento com o transporte público é o mesmo da manhã, quando não pior, especialmente em dias de chuva. Há algumas semanas, aliás, o congestionamento foi tanto que ela resolveu descer do ônibus e fazer o trajeto até em casa a pé. O resultado foi uma pneumonia e boas horas de fila no hospital público do bairro, que, para variar, não tinha médico para lhe atender nem os remédios de que necessitava. E alguns dias de cama, que demandaram atestado para o patrão lhe pagar.
É com o peso dessa odisseia nas costas que nossa heroína chega em casa, noite alta, sonhos reduzidos a pó. Mas não há tempo para recompô-los: a aguardam a comida a ser feita para o dia seguinte, a louça e a roupa a serem lavadas, a casa a ser arrumada. Porque o século 21 trouxe mais espaço profissional para as mulheres, mas não as isentou das tarefas domésticas, em dupla – ou tripla? – jornada, seis dias por semana. E, no sétimo, nada de descanso: é dia de ir à feira e comprar cada vez menos, por conta da inflação, implacável.
São essas Marias que devemos homenagear hoje, donas de casa, chefes de família, trabalhadoras, mães. Brasileiras de garra e coragem, que, valentes, enfrentam corajosamente essa dolorosa rotina. Malabaristas exímias, que não perdem a esperança e seguem se equilibrando na corda bamba em que se transformou o exercício de tocar a vida. Que fazem, de cada vitória diária, o combustível para seguir em frente E que merecem o nosso empenho para tornar seus sonhos possíveis e menores as agruras que tanto as afligem.
Marlene é empresária e coordena todos os partidos políticos na campanha nacional por Mais Mulheres na Política, que pautou o Senado Federal na PEC 98. Ela também foi candidata ao Senado em 2014 por São Paulo, obtendo quase 400 mil votos.