Variedades

Tradicional Filarmônica de Viena se apresenta em São Paulo com Valery Gergiev

Pouco antes das 10 da manhã, as quase cem cadeiras colocadas em uma das salas de ensaio do Instituto Baccarelli, na favela de Heliópolis, já estão ocupadas – e os jovens músicos não param de chegar. Três deles formam uma rodinha no fundão. Afinam os violinos, ouvem uns aos outros. Nervosos? “Quase nada”, diz um deles. “Tremendo”, brinca o outro, não sem certa apreensão no olhar. “Parece que já chegaram”, diz alguém. “É o spalla que vai dar a aula?”. Sim, Rainer Küchl. “Sério, aquele violinista que está na orquestra há 40 anos?” Ele mesmo. “Preciso de água.”

O nervosismo é mais do que justificado. Rainer Küchl é o spalla da Orquestra Filarmônica de Viena. Dizer que é a maior do mundo não é exagero, mas veredictos como esse poderão ser sempre disputados. O que não dá para disputar é o fato de que, ao longo de seus mais de 140 anos de história, a filarmônica se mistura à própria evolução da música ocidental. Basta lembrar que alguns dos músicos que a criaram, em 1842, haviam participado anos antes da estreia da Nona Sinfonia de Beethoven. Ou que a orquestra foi responsável por estrear obras de Wagner, Brahms ou Mahler. E que, de geração a geração, tamanha tradição tem sido passada até os integrantes atuais do grupo, que sobem nesta terça, 8, e quarta, 9, ao palco da Sala São Paulo.

Os concertos abrem a temporada da Cultura Artística e serão comandados pelo maestro russo Valery Gergiev, uma das estrelas da regência mundial, que vem pela primeira vez ao Brasil. A agenda do grupo em São Paulo inclui ainda, além das aulas oferecidas na manhã de segunda, 7, no Instituto Baccarelli, um ensaio aberto para estudantes no fim da tarde desta terça. Na ocasião, os músicos vão falar da história da orquestra e de suas características mais marcantes: além da sonoridade, o fato de que não há um maestro titular, ou seja, o grupo é gerido pelos próprios instrumentistas, a quem cabe tomar todas as decisões administrativas e artísticas.

“Trazer uma orquestra como essa ao Brasil é um desafio”, diz o superintendente da Cultura Artística, Frederico Lohmann. “Tudo começa com anos de antecedência, quando a orquestra sinaliza a possibilidade de fazer uma turnê. A agenda é disputadíssima. E então começam as conversas com outras cidades, para possibilitar a viagem.” Desta vez, eles passaram pelos EUA e pela Colômbia antes de vir a São Paulo. “Uma vez que a turnê esteja fechada, começam os desafios de logística para realizar o transporte de 130 pessoas. Eles têm regras rígidas: precisam ter um dia de descanso entre a viagem e o concerto, boa parte dos músicos precisa viajar de classe executiva. Não há flexibilidade quanto ao repertório e são eles que escolhem o maestro com quem vão se apresentar.” E há a questão financeira, ainda que o contrato não permita que se divulgue valores. “Posso dizer que é muito cara. E eles não têm subsídios para viajar, como outros grupos, o que significa uma enorme mobilização para providenciar as apresentações e toda a agenda do grupo aqui.”

Sonoridade

Küchl chega à sala de ensaio debaixo de aplausos. Na frente da plateia, a primeira providência: pedir que tirem uma foto sua com os músicos ao fundo. Mas o semblante logo volta a ficar sério, assim que o spalla da Sinfônica Heliópolis, Robinho Carmo, começa a tocar a Sinfonia Espanhola, de Lalo. “Você precisa se perguntar: o que preciso fazer para melhorar o som?”, ele interrompe após alguns compassos, corrigindo aspectos da interpretação. “Controle o som, assim você cria uma interpretação.” Troca de violino com o aluno. “Cada instrumento é diferente. Você precisa entender o seu instrumento e buscar a interpretação que ele possibilita.” Na plateia, formada por alunos de diversas escolas de música, os olhos são atentos, alguns tomam notas. “Para tocar é preciso olhar na partitura e saber: o que você quer enfatizar com a sua interpretação. E como é possível atingir essa meta.”

Som e interpretação são dois conceitos-chave na trajetória da orquestra. A linhagem artística que remonta ao século 19, ou seja, ao trabalho com os autores das obras que hoje são apresentadas, é uma das obsessões da Filarmônica de Viena, que leva em consideração a escola de interpretação – e a sua adequação à história do grupo – na hora de avaliar candidatos a uma vaga na orquestra. Não por acaso, a filarmônica já foi descrita como uma “sociedade secreta”, ou fechada. Nem sempre de forma elogiosa. Em sua trajetória, há polêmicas delicadas: a primeira delas, sua atuação durante a 2.ª Guerra (foi só em 2013 que o grupo abriu seus arquivos do período a historiadores e reconheceu sua cumplicidade com o regime nazista); a segunda, o número pequeno de mulheres (em pleno século 21, são apenas sete).

Quanto ao som, é um dos mistérios do mundo da música clássica. Em Viena, alguns músicos utilizam instrumentos diferentes daqueles usados por outros de todo o mundo, o que, com certeza, interfere na sonoridade do conjunto. Mas os próprios integrantes da orquestra chamam atenção para outro aspecto: os músicos da filarmônica tocam também na Ópera de Viena, acompanhando cantores e, nesse sentido, incorporando ao seu dia a dia o mais natural dos instrumentos: a voz humana. “No fim das contas, por mais que tentemos explicar o fenômeno Viena, o fato é que eles são simplesmente incapazes de produzir um som feio”, disse certa vez o maestro Zubin Mehta, membro do seleto grupo de regentes convidados a comandar o grupo.

Entrevistas de músicos da orquestra são raras. Mas, em um vídeo gravado para celebrar seus 45 anos de filarmônica, Küchl, que em dois anos dá lugar a José Maria Blumenschein, alemão filho de brasileiros, dá uma pista sobre o que significa tocar na orquestra. “Tem sido um sonho, desde a audição até a hora da aposentadoria. Sem a orquestra não haveria nada. Eu não haveria conhecido minha mulher nem teria minhas filhas. E há a experiência com os grandes maestros, Karajan, Bernstein, Giulini, Kleiber. Quem sabe onde estaria se não fosse essa orquestra. Foi fantástico.” Mais do que uma orquestra, a Filarmônica de Viena é um mundo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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