A poeta norte-americana Emily Dickinson (1830-1886) era uma mulher solitária – raramente saía de casa em seus últimos anos e publicou poucos poemas em vida: apenas 10, divulgados em jornal. Após sua morte, porém, sua irmã descobriu um verdadeiro tesouro, na cômoda de seu quarto: manuscritos de cerca de 1.800 poemas, escritos ao longo de 30 anos. Publicados, descobriu-se ali uma voz de sensibilidade delicada e aguda inteligência. Versos que traziam sutileza em seus ritmos, concisão nas suas imagens, densidade em suas ideias. Logo, a obra de Emily Dickinson foi alçada a uma das principais da literatura mundial.
"É uma poesia que concilia um mergulho na linguagem com incursões filosóficas por territórios em que poucos escritores foram capazes de chegar", observa Adalberto Müller, professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal Fluminense e autor de uma inédita e importante tarefa: a tradução de todos os poemas de Dickinson, trabalho que, pela extensão, foi dividido em dois volumes. Assim, acaba de ser lançada Poesia Completa, Vol. 1, edição dividida entre as Editoras da Unicamp e a da UnB, com 888 páginas. O próximo tomo ainda não tem data de lançamento.
Trata-se da primeira versão em português da obra completa de Dickinson – até então, havia apenas antologias em Portugal e no Brasil, que não somavam mais de 500 poemas. E agora chega um trabalho apurado, com notas explicativas e as chamada variantes, ou seja, outras versões do mesmo poema. As margens das páginas contêm as alternativas (palavras ou expressões) que a própria Emily Dickinson anotava, como possíveis substituições a serem feitas. Por fim, o livro traz ainda um posfácio com apresentação dos aspectos editoriais relativos à transcrição dos poemas e referências que ajudam o leitor a compreender o contexto em que a obra foi produzida.
"Apesar de haver escrito na segunda metade do século 19, Dickinson é bastante contemporânea, pelos temas de que trata (fama, anonimato, fobia social, amor lésbico, crise religiosa, preocupação ambiental, etc.)", comenta Müller. "Por isso, da mesma forma que buscava a beleza, capaz de arrepiar, ela buscava a verdade dos fatos, inclusive científicos – tinha conhecimentos incomuns de botânica, astronomia e geologia. Ela também escreveu sob o impacto da Guerra Civil (1861-1865) e da polarização extremista. Seu pai e amigos eram abolicionistas, lutavam pela causa indígena e Emily conviveu com imigrantes."
O que torna os versos de Dickinson tão singulares é o refinamento de sua linguagem – ao mesmo tempo que seus poemas trazem ecos de clássicos como Shakespeare, sua dicção é moderna como mostra o uso de pausas, vazios, assimetrias e, principalmente, dos travessões, recurso gráfico usado mais para criar intervalos entre palavras do que inserir apostos nas frases e que se tornou uma de suas marcas mais conhecidas.
"Mesmo escrevendo à mão, Dickinson já prevê uma poesia bastante gráfica, isto é, em que a escrita reflete as tensões do corpo (uma luta corporal, para citar Ferreira Gullar)", nota o tradutor. "Isso incide sobre ritmo e sobre a significação. Por exemplo, as pausas e os vazios (elipses) criam furos na linguagem, originando dilemas e paradoxos interpretativos, ao passo que as assimetrias operam como a síncope musical, com efeitos harmônicos inusitados. Muitos músicos (como Aaron Copland, que compôs 12 Poems of Emily Dickinson) perceberam essa musicalidade sincopada de Dickinson, muito moderna. Ela mesma tocava spirituals no piano, um gênero de origem afro-americana que está na raiz do blues."
Embora não sejam meramente autobiográficos, os poemas deixam claro que Dickinson experimentou ou foi capaz de imaginar profundamente não apenas o desespero, a instabilidade psíquica, a carência e a dor, mas também os sentimentos mais profundos de amor, de êxtase e de felicidade, observa Cristanne Miller, professora da State University of New York at Buffalo, autora do prefácio. Segundo ela, foi a partir dos 30 anos que Dickinson se tornou reclusa, e a condição de solteira e o afastamento social a ajudaram a se dedicar à escrita mais intensamente, o que aconteceu a partir do final de 1850.
"Como o espírito de Dickinson é sempre o da contradição, sua poesia ao mesmo tempo espera e desespera", aponta Müller. "Ela experimentou todas as formas de dor: da do abandono (ela se descreve como uma criança trancada no armário) à dor do confinamento sexual e da falta de liberdade social para as mulheres; da desilusão amorosa à perda de amigos importantes e familiares por doenças fulminantes; da dor metafísica à dor política dos acontecimentos da Guerra Civil. E, enfim, as dores de todas as doenças que a acometeram, inclusive da crise renal aguda, que lhe causou uma cegueira progressiva. Diante de uma "dor – tão total -", como ela própria diz, Dickinson busca o prazer no jardim da poesia, e na poesia do jardim."
Para traduzir os 1.800 poemas de Dickinson, Müller partiu de uma ideia de equivalência, de equilíbrio tenso entre o original e a tradução. "Se traduzo uma autora que escreveu 90% da poesia seguindo praticamente o mesmo padrão métrico e de rimas, tenho que pensar em métrica e em rimas. Claro, sem abandonar o sentido, ou melhor, os aspectos semânticos, e muito menos as imagens, a linguagem figurada", conta ele, que trabalhou durante sete anos nos versos de uma poeta em que o não dizer vale tanto quanto o dizer e cuja trajetória ainda fascina – pelo menos, 4 filmes e séries levaram sua vida e a poesia para as telas, como Dickinson, dedicada ao público teen, cuja 2.ª temporada estreou no dia 8 na Apple TV+.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>