Variedades

Três obras celebram Scriabin

No início de 1914, o mundo prestes a embarcar na primeira e mais sangrenta das guerras mundiais, um russo mergulhava numa reflexão movida a paixão e misticismo para propor, a seu modo, uma nova concepção de mundo. Aleksander Scriabin (1872-1915), nutrido de música e teosofia, buscava o segredo do Mistério, para transcender a miserável condição humana. “Por que o Eterno me infligiu a queda neste abismo vertiginoso? Por que a doce Providência fechou-me as portas do Caminho?”

Descobriu o Caminho às vésperas da guerra, mas não pôde percorrê-lo. Morreu um século atrás, no dia 27 de abril de 1915. Seu projeto era tão megalomaníaco quanto o de Wagner. Nos anos 1840, o autor da Tetralogia imaginara um teatro de madeira, construído para abrigar suas óperas num festival gratuito de uma semana, teatro este que seria destruído em seguida. Scriabin sonhou com uma obra de arte total intitulada Mistério.

Com duração de sete dias e sete noites, não teria espectadores, só participantes; haveria uma só performance, e num templo especialmente construído para o evento, na Índia; um evento que transformaria a consciência dos participantes, dando-lhes acesso a um grau superior de consciência, transcendendo a condição humana e os limites de tempo e espaço. “Literalmente, levaria a história humana a seu final”, na expressão do musicólogo Richard Taruskin.

O que o compositor teve tempo de pôr no papel, um primeiro esboço, para piano, já indica a grandiosidade do projeto: trata-se de um Ato Prévio – Preparação para o Mistério Final. Alexander Nemtin orquestrou-as em 1936. Ainda que inacabado, o ato prévio dura 2h40 min, tem três partes – Universo, Humanidade e Transfiguração – e pode ser ouvido no YouTube numa versão comandada por Vladimir Ashkenazy. Este maestro, aliás, participa de uma caixa de 18 CDs do arquivo da Decca recém-lançada a propósito do centenário, com ótimos intérpretes, como Pierre-Laurent Aimard, Gergiev, Horowitz, Kissin, Maazel, Pogorelich, Richter, Trifonov, Grosvenor. E duas gratas surpresas: os brasileiros Jean-Louis Steuerman (no Poema Trágico, op. 34 e nos dois poemas opus 44) e Roberto Szidon (nas sonatas Fantasia em sol sustenido menor e em mi bemol menor).

A sinestesia aparece em Prometeu, ou Poema do Fogo, opus 60, em que prescreve um imenso teclado no qual cada nota corresponde à projeção de uma cor. A posteridade o marginalizou por causa desses delírios místicos, representados por suas últimas três sinfonias: Poema Divino, Poema do Êxtase e Poema do Fogo. Ele é, injustamente, tido por muitos pesquisadores sérios como “um beco sem saída”.

Seu compatriota russo Shostakovich considerou-o “nosso pior inimigo”, referindo-se a este período final. Na verdade, é preciso falar de dois Scriabins distintos. O primeiro, da juventude, foi notável pianista de prestígio internacional, incluindo turnês pelo Ocidente e longas estadas na Europa, até conhecer e se apaixonar pela teosofia em 1905.

Não seria exagero qualificar o jovem Aleksander Scriabin como o resultado moderno de uma fusão entre Liszt e Chopin. Desde a década de 1880, fez do piano o veículo de suas criações mais importantes, como as séries de Prelúdios, Estudos, Mazurcas e as dez sonatas.

Chopin era seu ídolo mais dileto. Scriabin compôs seus 24 prelúdios opus 11 entre 1888, quando ainda estudava no Conservatório de Moscou, e 1896, quando já era pianista consumado. Foi seu tributo mais direto a Chopin, pois ele os espelhou no famoso ciclo opus 28 do compositor polonês, seguindo a mesma ordem tonal. Apelidados de prelúdios de viagens, são contemporâneos de suas andanças europeias. Um CD recente, do selo Odradek, traz a maior parte desses estudos com o ótimo pianista Javier Negrín, nascido em Tenerife.

A paixão por Chopin era avassaladora – compôs 23 mazurcas, gênero polonês característico do romântico, entre 1888 e 1903 -, mas não o induziu ao pastiche. Ao contrário, os prelúdios, mazurcas e valsas são laboratórios para experiências harmônicas ousadas. Evitam as tríades perfeitas, preferem os acordes em intervalos de quarta, sobretudo o trítono – o “diabolus in musica” da Idade Média, por sua dissonância. Um caminho que o levaria ao acorde místico do Prometeus, uma série de seis desses intervalos superpostos. No prelúdio n.º 3 opus 74, de 1914, ele tenta expressar musicalmente a dissolução do eu, ao não fazer as cadências convencionais.

Se o autor dos Noturnos foi seu ídolo no domínio da escrita pianística, Beethoven foi sua primeira paixão orquestral. Em 1899, Scriabin compôs sua primeira sinfonia. Alugou uma dacha para passar o verão. Estava com 27 anos.
Sua estreia sinfônica é um arremedo da Nona de Beethoven: seis movimentos, o último com solistas vocais e coro, além de um Hino à Arte com versos dele mesmo. Mas os três poemas finais mereceriam ser levados aos concertos nesta temporada sinfônica – o que não vai acontecer, mesmo com a data redonda do centenário de sua morte.

Numa época em que o misticismo barato ocupa horários nobres em várias emissoras abertas de TV e constrói templos gigantescos, aproveitando-se do impulso humano atávico na busca da transcendência e da salvação das almas, seria com certeza mais sadio e instigante conhecer ao vivo (e até em cores, no caso de Scriabin) os delírios musicais de um criador de primeira qualidade do século 20.

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