“A verdade é que a montagem de uma ópera tem muito do desfile de carnaval. No fundo, os dois espetáculos são muito parecidos”, diz Matheus Nachtergaele em cena de Trinta, longa de Paulo Machline que, não por acaso, faz sua première mundial nesta quarta-feira, 1, às 20h30, no Festival do Rio, no inusitado cenário do Theatro Municipal. “O desfile de carnaval tem exatamente a estrutura de uma ópera erudita. A ópera tem o libreto, a escola de samba tem o enredo. A ópera tem uma orquestra; a escola tem a bateria. A ópera tem bailarinos que dançam, e não cantam”, completa ele.
No filme, Matheus é Joãosinho Trinta, o artista que revolucionou o carnaval no Brasil nos anos 80. Mas, antes de ser tornar o Trinta, foi um jovem autodidata que cresceu no Maranhão ouvindo histórias do folclore, migrou para o Rio, onde se tornou bailarino do Theatro Municipal, e onde também descobriu seu talento para a arte da cenografia.
Joãosinho passou uma vida no Municipal antes de ser levado pelo cenógrafo e carnavalesco Fernando Pamplona para trabalhar com ele no Salgueiro, onde assumiu o carnaval em 1973 e assinou sozinho seu primeiro desfile em 1974, com o enredo O Rei de França na Ilha da Assombração.
Desde então, Joãosinho e o carnaval nunca mais seriam os mesmos. E é exatamente este período único da vida do carnavalesco que Trinta revela. “Descobri a história do João em 2002, ao ler um artigo do Carlos Heitor Cony e fiquei fascinado. Me mudei para o Rio, comecei a acompanhar e registrar o dia a dia dele. Ele estava preparando o carnaval da Grande Rio e, como sempre fazia, já morava no barracão, de onde voltava para casa só no dia da apuração”, conta o Machline, que passou seis meses com Joãosinho.
Mas, em vez de realizar uma biografia linear, o diretor decidiu contar o período da transição da vida de Joãosinho do cenário erudito para o popular do barracão. “Queria buscar o forte de sua história e contar o conflito entre estes universos, como nasceu sua persona. O momento em que nasce o super-herói Joãosinho Trinta”, completa o diretor. “Ele passou 30 anos no Municipal, dirigiu óperas. Há uma montagem de Tosca (de Puccini) que ele dirigiu, cujo figurino e arte são inspirados em Picasso. Foi importante para o erudito”, ressalta o diretor.
Nachtergaele, que incorpora Joãosinho com maestria, concorda com a escolha de Machline. “Depois que se abrem as portas do barracão, já sabemos da história, acompanhamos as decisões artístico-políticas dele. Este filme é uma homenagem bonita sobre o temperamento e a garra de um brasileiro com muita determinação, autodidata, imigrante, extremamente influenciado pela cultura popular brasileira, mas culto. É do choque desta cultura clássica com a verve nacional que muda o carnaval brasileiro para sempre”, analisa o ator.
Se não é por acaso, portanto, que a visão de Joãosinho sobre o erudito e o popular seja tão particular, tampouco não é por acaso o local escolhido para a pré-estreia de Trinta hoje: o Theatro Municipal. A ideia de ocupar o templo da ópera surgiu naturalmente. “Eu e Ilda Santiago (diretora do Festival do Rio) estávamos pensando onde seria melhor. E então ela sugeriu o Municipal. Era perfeito! Há várias adaptações técnicas para se fazer, mas vai valer a pena. Joãosinho vai estar conosco hoje”, comenta Joana Mariani, que, ao lado de Matias Mariani, assina a produção do filme. “Apesar de o trabalho de realizar uma sessão em um teatro requer ajustes técnicos, como no caso do som, vai valer a pena. O teatro também era sua casa”, comenta Machline.
Segundo Matias, a escolha do local não só é simbólica como faz justiça ao Municipal. “Se não fosse o Theatro, se ele não fosse apaixonado por balé, pelo erudito, jamais teria vindo para o Rio e feito sua história aqui”, diz o produtor.
Para que o universo do carnaval fosse retratado com fidelidade na tela, a produção cuidou de cada detalhe. Sob a direção de arte de Daniel Flaksman, profissionais do carnaval trabalharam como se estivessem construindo o desfile de 1974. “Trabalhamos com o pessoal de escolas de samba, reproduzimos com fidelidade e fizemos uma pesquisa muito detalhista. Era como ver o Trinta trabalhando de novo”, conta Joana.
O resultado é como ver mais um sonho de Joãosinho se concretizar. “Ele também queria fazer a ópera do povo: misturar a ópera com um desfile e botar na avenida”, conta Machline. Ao saber da escolha do Rio para sediar a Olimpíada de 2016, ele decidiu que seria esse o momento. Infelizmente, não teve tempo. Joãosinho morreu sem realizá-lo, em dezembro de 2011. “Seria incrível. Tenho certeza que ele conseguiria. Como o Pamplona dizia, quando decidia algo, ele convencia qualquer um que seria possível.”