O escritor italiano Antonio Scurati está concentrado nos preparativos finais para o lançamento do próximo volume da sua trilogia sobre Benito Mussolini, o ditador italiano que foi um dos fundadores do fascismo. Cercado de expectativa, M, Luomo della Provvidenza (numa tradução livre, M, o Homem da Providência) chegará às livrarias da Itália em setembro. O primeiro volume da trilogia, M, O Filho do Século, de 2018, tornou-se um fenômeno editorial. Na Itália, ganhou o Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana, e vendeu acima de 300 mil exemplares. Depois de enorme repercussão, ganhou traduções em mais de 40 países (no Brasil, pela editora Intrínseca, que também adquiriu os direitos da nova obra).
O sucesso do livro se deve tanto à oportunidade do tema, em meio às discussões contemporâneas sobre a crise da democracia liberal no mundo e a volta dos fantasmas do autoritarismo, quanto ao formato que Scurati, professor de Literatura Contemporânea na Universidade de Comunicação e Línguas de Milão, concebeu para a obra. M é uma biografia romanceada, que usa técnicas da narrativa ficcional, mas em que nada foi inventado. As frases, citações e até mesmo a reconstituição de pensamentos e sentimentos dos personagens estão lastreadas em fontes históricas minuciosamente pesquisadas pelo autor.
M, o Filho do Século reconstitui a vertiginosa trajetória de Mussolini rumo à conquista do poder na Itália. A fundação em março de 1919 do Fasci di Combattimento, o movimento criado por Mussolini que se transformaria posteriormente no Partido Nacional Fascista, não mereceu mais do que dez linhas no jornal italiano Corriere della Sera. Três anos e sete meses depois, Mussolini empalmaria o governo e viraria primeiro-ministro com a Marcha sobre Roma. Em M, o Homem da Providência, Scurati mergulha no período que vai das "leis fascistas" de 1925, que desmantelaram definitivamente o estado liberal, à grande exposição com a qual o fascismo se autocelebra em 1932, no décimo aniversário da Marcha sobre Roma.
A nova obra narra os anos em que o fascismo está consolidado na Itália, permeando todos os aspectos da vida social, política e espiritual. "Após os anos de conquista do poder, recontarei os anos em que os jovens pseudorrevolucionários, que entraram nos palácios de poder que diziam desprezar, viverão apenas para conservar e aumentar seu poder", disse Scurati em entrevista, por escrito, ao <b>Estadão</b>. Nela, discutiu também o paralelismo entre o fascismo e os atuais movimentos populistas, os possíveis efeitos políticos da pandemia do coronavírus e os movimentos "antifa". A seguir, os principais trechos.
<b>O fascismo é eterno, como disse Umberto Eco, ou foi um produto de um contexto histórico italiano específico? O senhor tem uma definição para fascismo, que se tornou um termo muito popular? </b>
Não. O fascismo é um produto histórico da modernidade ocidental, uma aberração dela. Como tal, seu retorno é sempre possível, sempre que impulsos regressivos prevalecem sobre os progressivos no corpo social. Mas, justamente por ser um fenômeno histórico e não eterno, suas formas mudam com as transformações históricas. A Itália, neste e em muitos outros casos, foi apenas um laboratório político de um fenômeno que mais tarde se manifestaria em muitos outros países, com características específicas. Uma definição é difícil, se não impossível. Digamos que há uma ameaça fascista toda vez que uma política que aposta no medo prevalece à custa de uma política que aposta na esperança.
<b>O fascismo, na época de Mussolini como chefe do governo italiano, apesar de sua violência, atraiu muitos seguidores em todo o mundo, inclusive no Brasil. Na sua opinião, qual foi a razão para o fascismo, como o senhor disse numa entrevista, ter sido "a última grande invenção italiana exportada em todo o mundo"? </b>
O triunfo do fascismo se deu, não apesar da violência, mas em virtude da violência. A violência não foi apenas uma ferramenta eficaz para a luta política, mas um objeto de desejo político. Na minha interpretação do curto e sangrento século que se abriu na Piazza San Sepolcro (em Milão) em março de 1919, com a fundação do Fasci di Combattimento, a hiperviolência foi o pivô em que girou o sistema histórico. Os biênios vermelho e negro (como são conhecidos na Itália os anos entre 1919 e 1922, período marcado pela agitação dos movimentos operários socialistas e, em seguida, em reação, pelo surgimento dos esquadrões fascistas) são a primeira metade de uma guerra civil que passará por guerras coloniais, pela Guerra Civil Espanhola e pela 2ª Guerra Mundial. Antes disso, a humanidade (durante a 1ª Guerra) passara três anos comendo, bebendo, dormindo e fumando imersa na lama dos cadáveres em decomposição de seus companheiros soldados nas trincheiras. Esta foi a matriz experiencial das experiências totalitárias. E, para essa humanidade, a violência parecia a única solução possível para todos os problemas complexos e insolúveis da vida moderna e democrática.
<b>O primeiro volume de sua trilogia mostra como os fascistas chegaram ao poder na Itália, usando a violência, mas também explorando a retórica antipolítica, medos, ressentimentos e angústias. Vê semelhanças entre o fascismo e os movimentos políticos populistas e de extrema direita que ascenderam recentemente no mundo?</b>
Sem dúvida, há semelhanças. O que existe de análogo é um amplo sentimento de decepção, traição e rejeição às velhas classes dominantes, guardiãs dos valores democráticos e parlamentares. Mas é enganoso equiparar o que chamamos de novos populismos a fascismos históricos. Isso nos impede de entender o passado e o presente. Em vez disso, é necessário enfatizar um fenômeno mais amplo, que afeta setores muito mais amplos da população e não apenas alguns nostálgicos que fazem saudações fascistas. O alerta sobre os neofascistas nos faz perder de vista a questão real: grandes massas de eleitores, há décadas, demonstram desconfiança nas instituições democráticas liberais.
<b>M, o Filho do Século menciona, logo no seu início, as mortes na Itália causadas pela gripe espanhola. O senhor considera que os efeitos da pandemia de 1918 foram relevantes na ascensão de Mussolini? Avalia quais podem ser os efeitos políticos da atual pandemia do novo coronavírus?</b>
A epidemia de gripe espanhola, juntamente com a 1ª Guerra Mundial, contribuiu para criar um clima apocalíptico, de fim de um mundo e o começo de um novo mundo que teria violentamente cortado as pontes com o passado. Se a crise social e econômica após a pandemia ficar fora de controle, algo assim pode acontecer. Mas, sob muitos aspectos, menos sensacionais, mas não menos importantes, essa crise já vem se desenvolvendo há anos.
<b>Os adversários de Mussolini eram irresolutos e hesitantes. Isso facilitou a ascensão do fascismo na Itália. Mas Mussolini também era impetuoso e um político muito astuto. O fascismo poderia ter existido sem Mussolini? Depois de estudar sua vida minuciosamente, como o senhor o descreve?</b>
Ao contrário da crença popular, Mussolini era um homem vazio. No início de sua ascensão política, não tinha ideias, ideais, teorias, princípios, lealdades, estratégias. Triunfou graças à supremacia tática do vazio. Ele foi o primeiro a incorporar o tipo de líder que lidera as massas, sem precedê-las em direção a objetivos altos e distantes, mas seguindo-as, cheirando seu humor, quase sempre mau humor, e satisfazendo-as. Nisso, Mussolini era o arquétipo de todos os líderes populistas subsequentes do século vindouro, incluindo Trump, Bolsonaro e Salvini (Matteo Salvini, líder do partido Lega Nord, ex-ministro do Interior da Itália).
<b>No ano passado, enquanto estava no governo, Salvini recusou-se a participar das comemorações do Dia da Libertação da Itália, que marca o triunfo da resistência ao nazi-fascismo. Críticos dizem que Salvini tenta normalizar o legado de Mussolini. Na sua opinião, que lugar Mussolini ocupa hoje na vida italiana?</b>
Salvini fez pior. Há anos, ele usa deliberadamente frases publicamente conhecidas de Mussolini. Com isso, torna-se referência não apenas para os nostálgicos do fascismo, mas também para os muitos eleitores que agora têm a mentalidade e a cultura da esquerda progressista, moderna, solidária e politicamente correta. Ele faz um novo apelo à irracionalidade na política que conquista muitos seguidores. Nisso é semelhante a Trump ou Bolsonaro.
<b>Como avalia os movimentos "antifa" e suas táticas de protesto, que incluem, em alguns casos, violência?</b>
A esse respeito, o fascismo histórico de cem anos atrás nos dá uma lição inequívoca: o recurso à violência política pela esquerda radical sempre acaba virando uma vantagem a favor da extrema direita. Quando você cai nesse terreno, os fascistas vencem porque são os profissionais da violência.
<b>Quais as principais lições que podem ser extraídas da história de Mussolini para evitar a volta do autoritarismo e revigorar a democracia?</b>
A principal lição: quando a política do medo prevalece sobre a da esperança, a maioria dos cidadãos está pronta para desistir de sua liberdade democrática em troca de uma promessa autoritária de segurança e proteção.
<b>O livro é um enorme sucesso na Itália e em muitos países. Refletiu sobre as razões desse sucesso?</b>
Nunca imaginei tanto sucesso. Penso que a principal razão é a seguinte: pessoas perdidas, confusas, desconfiadas dos meios de comunicação de massa, recorrem à literatura como uma forma de conhecimento. Tentam achar no romance – que é a forma mais aberta e inclusiva, mais apaixonada, mais democrática da literatura – um mapa cognitivo para entender a vida.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>