Ele aponta arma a jornalistas, critica a influência da imprensa e do Judiciário na política e adora uma provocação sobre questões de identidade. O perfil poderia ser o de pelo menos meia dúzia de políticos da atualidade. Mas é no país da liberdade, da igualdade e da fraternidade que a ressonância desse discurso está virando uma campanha presidencial de cabeça para baixo. Trata-se do jornalista francês de extrema direita Éric Zemmour, que, ainda sem lançar oficialmente sua candidatura, passou ao segundo lugar nas pesquisas para enfrentar o presidente Emmanuel Macron nas eleições de abril.
Com a extrema direita francesa dominada há décadas pelos Le Pen – primeiro o pai, Jean-Marie, depois a filha, Marine, que busca a presidência pela terceira vez -, Zemmour surge como uma cara nova. Seu discurso, segundo analistas franceses ouvidos pelo Estadão, ao mesmo tempo que ataca a imigração e o Islã, coração de sua agenda, responde a um desejo dessa ala política de reescrever a história da França.
Se por um lado Zemmour, de 63 anos, é um estreante na política, sua fama fora dela é antiga. Nascido em um subúrbio de Paris de uma família de judeus berberes que deixou a Argélia nos anos da guerra (1954-1962), formou-se pela Universidade Sciences Po após ser reprovado duas vezes na prestigiosa École Nationale dAdministration – escola de governo por onde passou a maioria dos presidentes franceses, incluindo Macron. Trabalhando como jornalista, atuou até recentemente como colunista do Le Figaro e outros jornais conservadores, assim como comentarista de TV.
Construiu seu nome com ataques à imigração e ao Islã, provocações às mulheres e desprezo pelo politicamente correto, como explica o cientista político Jean-Yves Camus, diretor do Observatório das Radicalidades Políticas da Fundação Jean Jaurès. Autodenominado "Trump da França", Zemmour parece ser muito mais radical do que Marine Le Pen, que passou os últimos anos tentando tornar o discurso de seu Reagrupamento Nacional (RN) mais palatável – mesmo assim, o partido amargou uma derrota nas regionais de junho.
Segundo Camus, muitos dos que votaram em Le Pen no passado estão agora convencidos de que ela não se tornará presidente. Para o cientista político, é cedo para dizer se haverá uma aliança entre os dois. Mas a transferência de votos no segundo turno não é automática na opinião do sociólogo e cientista político Alain Policar, do Centro de Pesquisas Políticas da Sciences Po. Para Policar, as duas bases eleitorais têm importantes diferenças, com Le Pen apelando aos mais populares e jovens e Zemmour, aos mais velhos.
"Os eleitores franceses de extrema direita que escolheram (François) Fillon em 2017 também acham que o partido conservador tradicional, Os Republicanos, é muito brando com a imigração, a lei e a ordem e o Islã. Portanto, consideram votar em Zemmour", diz Camus.
Como Trump, Zemmour joga com o fato de não ser um político profissional e a capacidade de polemizar. Um vídeo recente dele apontando um fuzil para jornalistas em uma feira de armamentos teve milhões de visualizações. Projetando-se como o grande defensor da civilização cristã da França – ainda que ele mesmo seja judeu – coleciona best-sellers sobre o declínio do país, que ele atribui à imigração dos africanos muçulmanos que estariam empenhados em uma colonização reversa da França.
Ele também tem chocado a comunidade ao dar declarações tentando justificar o regime francês que colaborou com os nazistas na 2.ª Guerra. "(Regime) Vichy protegeu os judeus franceses", declarou Zemmour em setembro na TV, sugerindo que o governo do então marechal Philippe Pétain, que enviou mais de 72,5 mil judeus para a morte nos campos nazistas, não foi tão ruim.