Uma série de vídeos que surgiram nas redes sociais na semana passada e foi exibida na televisão russa abriu debates sobre a possibilidade de soldados ucranianos terem cometido crimes de guerra ou se estariam agindo em legítima defesa. Também acusada de cometer crimes de guerra desde o início da invasão por supostamente matar e torturar civis além de utilizar armas proibidas, a Rússia prometeu punir os responsáveis por "execução de soldados russos."
Vídeos que foram obtidos e analisados pelo <i>New York Times</i> mostram cenas de antes e depois de um confronto no início deste mês, em que pelo menos 11 russos, a maioria dos quais é vista caída no chão, parecem ter sido mortos a tiros à queima-roupa depois que um de seus companheiros combatentes de repente abriu fogo contra soldados ucranianos que estavam por perto.
Os vídeos, que tiveram sua autenticidade comprovada pelo <i>Times</i>, embora exibam parte das cenas do que parecem ser execuções, não mostram como ou por que os soldados russos foram mortos.
As imagens foram inicialmente divulgadas pelos canais de notícias e mídia social ucranianos que os utilizavam para elogiar a proeza militar de suas forças armadas e divulgar sua retomada do território perdido para a Rússia no início da guerra. Na Rússia, porém, os vídeos provocaram uma resposta feroz entre os comentaristas pró-guerra e apoiadores nacionalistas do Kremlin, que instaram o governo a pedir uma investigação internacional.
Agora, Moscou e Kiev acusaram um ao outro de cometer crimes de guerra no mesmo episódio – os russos acusando as forças ucranianas de "atirar impiedosamente nos prisioneiros de guerra russos desarmados", e o comissário ucraniano para os direitos humanos, Dmitro Lubinets, dizendo que os soldados russos haviam aberto fogo durante um falso ato de rendição.
As forças russas e ucranianas têm sido acusadas de crimes de guerra desde que Moscou ordenou uma invasão total da Ucrânia no final de fevereiro, embora o número e a escala dos crimes russos relatados excedam em muito os crimes de que a Ucrânia é acusada.
As Nações Unidas disseram que o episódio deveria ser investigado.
"Estamos cientes dos vídeos e estamos investigando-os", disse Marta Hurtado, porta-voz do Escritório de Direitos Humanos da ONU, à agência Reuters na sexta-feira, 18. "Alegações de execuções sumárias de pessoas fora de combate devem ser investigadas imediata, completa e efetivamente, e todos os perpetradores devem ser responsabilizados". Hurtado utiliza o termo em francês "hors de combat" que no direito internacional se refere a pessoas que não estão lutando por causa de rendição, estando desarmados, inconscientes ou incapazes de se defender.
<b>Soldados russos capturados</b>
As mortes exibidas nos vídeos em questão ocorreram quando o Exército ucraniano recapturou a vila de Makivka, na região de Luhansk, em meados de novembro, quando as forças russas sofreram pesadas perdas.
Ao comparar os vídeos com imagens de satélite, o <i>NYT</i> confirmou que os vídeos foram filmados em uma fazenda no vilarejo. Alguns dos vídeos fazem parte de uma série de quatro vídeos de drones divulgados em 12 de novembro por um canal pró-ucraniano do Telegram relatando a recaptura de Makivka. O <i>NYT</i> verificou que os outros vídeos aéreos também haviam sido filmados recentemente na aldeia.
A cena foi filmada por duas fontes: um soldado ucraniano não identificado que estava gravando diários em vídeo da luta por Makivka e vídeos de drones provavelmente filmados por forças ucranianas vigiando a ofensiva. Ao verificar que esses vídeos foram filmados no mesmo local e analisar o que eles mostram, o <i>NYT</i> consegue mostrar a sequência dos eventos.
O primeiro vídeo tem música – um recurso comumente usado em vídeo nas mídias sociais – e mostra um grupo de soldados ucranianos armados deitados em um campo enquanto disparam contra um alvo à distância. Os soldados falam ucraniano e russo. Tiros são ouvidos e o cinegrafista mostra seu rosto.
O segundo vídeo mostra uma perspectiva aérea do mesmo grupo de soldados ucranianos dentro do pátio de uma casa de fazenda. A casa e os edifícios circundantes ficaram seriamente danificados pelos combates, como muitos outros edifícios na área.
Ele mostra um soldado ucraniano deitado no chão de bruços, apontando uma metralhadora para um dos galpões do complexo. Um segundo soldado ucraniano está atrás dele. Um terceiro soldado ucraniano está andando pelo pátio segurando um rifle, e um quarto está no chão verificando o corpo do que parece ser um soldado russo morto. Um segundo corpo, também aparentemente russo, jaz imóvel nas proximidades.
Mais soldados russos estão abrigados dentro de um dos galpões, mas ainda não os vemos.
A próxima cena é um vídeo de celular filmado no pátio pelo mesmo soldado ucraniano. Há lacunas no vídeo, mas não se sabe o porquê. Mostra os quatro soldados ucranianos, com ao menos três deles armados.
Um soldado, com seu rifle em punho, aproxima-se devagar da estrutura onde os soldados russos estão abrigados. O soldado com a metralhadora fornece cobertura. Vários tiros são ouvidos – embora não esteja claro de onde – e o soldado se afasta lentamente de uma casinha, atraindo os soldados russos sob a mira de uma arma.
O vídeo é interrompido e, quando reiniciado, seis soldados russos aparecem deitados de bruços no chão, um ao lado do outro. Pelo menos dois deles estão vivos e podem ser vistos se movendo no vídeo; os outros estão imóveis. O vídeo mostra quatro outros soldados saindo lentamente da casinha, um após o outro, alguns com os braços levantados. Eles se juntam aos outros soldados no chão.
Os russos estão usando coletes à prova de balas e capacetes, e seus uniformes trazem marcas distintas – tiras vermelhas na parte inferior das pernas, uma com um objeto quadrado azul nas costas.
Dois dos ucranianos parados parecem relaxados e apontam seus fuzis para o chão. A captura desses soldados é inicialmente ordenada e sem incidentes – mas de repente tudo muda.
Quando um 11º soldado russo sai da casinha e abre fogo, mirando em um dos soldados ucranianos. Os ucranianos são pegos de surpresa. A câmera do celular se afasta quando o soldado ucraniano que filma a cena se encolhe. Uma análise quadro a quadro do que acontece a seguir mostra o soldado ucraniano ao lado levantando seu rifle e apontando para o atirador russo.
O vídeo termina e não se sabe o que acontece a seguir. Mas um segundo vídeo aéreo do local mostra as consequências: os soldados russos aparecem imóveis, aparentemente mortos, a maioria deles posicionados como estavam quando se renderam. O sangue se acumula ao redor deles e alguns parecem estar sangrando na parte superior do corpo ou na cabeça. Os soldados estão vestidos com os mesmos uniformes com as distintivas tiras vermelhas e marcação azul.
O soldado russo que atirou contra os ucranianos parece ter sido morto no local e está deitado na posição de onde abriu fogo. A parede de tijolos brancos ao lado de onde ele estava ficou danificada, talvez pelo retorno do fogo das forças ucranianas.
"Parece que a maioria deles levou um tiro na cabeça", disse Rohini Haar, consultor médico da Physicians for Human Rights, em uma entrevista ao <i>NYT</i>. "Há poças de sangue. Isso indica que eles foram deixados lá mortos. Parece não ter havido nenhum esforço para pegá-los ou ajudá-los".
Haar observou que, quando se renderam, os soldados russos estavam deitados, aparentemente desarmados, com os braços estendidos ou atrás da cabeça. "Eles são considerados hors de combat, ou não combatentes – efetivamente prisioneiros de guerra", disse.
<b>Definições de crimes de guerra</b>
O Estatuto de Roma, o tratado internacional que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, poderia processar isso sob vários de seus artigos se a Ucrânia fosse parte do tratado, disse Haar, incluindo o Artigo 8, inciso VI, que diz: "Matar ou ferir um combatente que, tendo deposto as armas ou não tendo mais meios de defesa, se rendeu a seu critério" é uma violação das leis dos conflitos armados internacionais.
Iva Vukusic, especialista em acusação de crimes de guerra da Universidade de Utrecht, disse que é difícil determinar se um crime de guerra foi ou não cometido com base apenas nas evidências de vídeo, e que o fator crítico é o tempo – quando os russos foram baleados.
"Foi em uma ou duas rajadas de fogo no momento ou imediatamente após o último russo sair e atirar nos ucranianos?" disse Vukusic. "Ou foi depois que a ameaça imediata foi neutralizada, como um ato de vingança – então isso é mais claramente um crime de guerra."
Se os russos foram baleados no calor do momento, disse Vukusic, não é claramente um crime.
"Se esses prisioneiros de guerra ainda não foram revistados, os ucranianos não sabem se estão armados, mesmo que estejam no chão."
As ações do atirador russo também são críticas, disse Vukusic, e podem ser consideradas perfídia – fingir rendição ou status de não combatente como um estratagema contra os ucranianos – que pode ser processado como crime de guerra sob as Convenções de Genebra.
"Pode muito bem ser que, se esse cara não tivesse atirado, todos eles teriam sido capturados como prisioneiros de guerra e sobrevivido", acrescentou o Vukusic.
Investigadores das Nações Unidas disseram no mês passado que haviam documentado casos de forças russas torturando prisioneiros civis e militares. Os investigadores também descobriram que as tropas ucranianas torturaram e abusaram de prisioneiros de guerra, mas "em menor escala".
O <i>NYT</i> relatou vários casos de supostos crimes de guerra russos, incluindo o uso de armas proibidas, ataques a alvos civis e assassinato de não combatentes. Em março, uma investigação visual do jornal mostrou tropas russas executando um grupo de combatentes ucranianos capturados e um civil em Bucha, um subúrbio a oeste de Kiev. O <i>NYT</i> também informou sobre a suposta execução de prisioneiros russos pelas forças ucranianas em abril.
Os vídeos de Makivka causaram indignação entre os comentaristas pró-guerra russos. Vladlen Tatarsky, um popular ativista e blogueiro, disse em um post no aplicativo de mensagens sociais Telegram que todo russo "deve assistir a isso várias vezes para entender contra quem estamos lutando" e que "nem um único russo pode viver e dormir com calma" como enquanto os perpetradores estiverem vivos.
Em seu noticiário na noite de sexta-feira, 18, o Channel One, rede de televisão estatal da Rússia, disse que os vídeos eram prova de que o governo de Kiev estava cometendo crimes de guerra. Apresentava Vladimir Kornilov, um cientista político, que disse que "a Ucrânia nunca é acusada de crimes de guerra porque mata os russos". Uma reportagem do Rossiya-1, outra rede estatal, acusou o Ocidente de manter "silêncio organizado" sobre os crimes de guerra ucranianos.
O conselho de direitos humanos da Rússia disse que enviaria o vídeo para organizações internacionais. O comitê investigativo do país, o equivalente russo do FBI, abriu uma investigação criminal sobre o caso.
Vukusic, especialista em crimes de guerra, disse que a Promotoria do Tribunal Penal Internacional provavelmente estava examinando o episódio, dada a atenção que recebeu. Segundo ela, uma investigação exigiria uma visita ao local para estabelecer onde todos estavam e coletar cápsulas de balas, exames patológicos e forenses de corpos recuperados e examinar as ações da unidade ucraniana após o tiroteio.
Vukusic disse que, ao avaliar o caso, os investigadores podem examinar se a unidade ucraniana tinha um padrão de tal comportamento, qual grupo de soldados estava em menor número e em quanto, e se outras forças estiveram próximas e de quem.
As autoridades ucranianas têm a capacidade de investigar e devem compartilhar suas evidências e descobertas de forma transparente, disse Vukusic. "Eles deveriam aproveitar esta oportunidade e enviar uma mensagem: Não queremos uma guerra suja. Queremos lutar com honra e legalmente. "
<b>Acusações trocadas</b>
Nesta segunda-feira, 21, a Rússia prometeu punir os responsáveis pela morte do grupo de soldados russos que aparecem nos vídeos. Moscou classificou a ação como execução, o que Kiev nega. "Claro que a Rússia vai procurar os autores deste crime. Eles devem ser encontrados e punidos", disse o porta-voz presidencial russo Dmitri Peskov à imprensa. Ele acrescentou que Moscou recorrerá a organizações internacionais para este fim, "se puder ser útil".
A comissão parlamentar de direitos humanos da Ucrânia negou no domingo, 20, que o exército ucraniano tenha executado prisioneiros de guerra russos, dizendo que soldados ucranianos se defenderam de soldados russos que fingiram se render.
Por outro lado, o Ministério Público ucraniano afirmou nesta segunda que descobriu quatro locais de tortura usados pelos russos enquanto ocupavam Kherson, uma cidade no sul da Ucrânia que as forças de Kiev recuperaram em 11 de novembro. "Em Kherson, os promotores continuam determinando os crimes da Rússia", afirmou o MP ucraniano no Telegram. A mensagem informa que as autoridades encontraram "locais de tortura em quatro prédios".
Entre os quatro prédios visitados pelos pesquisadores estão "centros de detenção provisória" de antes da guerra, "onde, durante a tomada da cidade, os ocupantes detiveram pessoas ilegalmente e as torturaram brutalmente". (COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS)