Atleta de crossfit há quase sete anos, duas vezes entre as nove melhores da competição nacional da modalidade e sem comorbidades. Nenhuma dessas características impediu que a dentista Raquel Trevisi, de 38 anos, enfrentasse um quadro grave da covid-19, em setembro de 2020. Após a extubação e alta hospitalar, porém, a batalha só havia começado: a reabilitação foi dura – e continua até hoje.
Ao perceber que poucos têm as mesmas condições que ela para bancar o tratamento pós-coronavírus, Raquel a criou o Projeto Com Vida. A intenção é melhorar a qualidade de vida Dos sobreviventes da covid e de suas famílias. Hoje, mais de 600 já foram assistidos pela iniciativa, sem pagar pela ajuda.
"Tenho propriedade para cuidar das pessoas porque passei por isso", diz Raquel. Com ela, tudo ocorreu de forma muito rápida: com dois dias de sintomas, foi internada com 5% do pulmão comprometido. Depois de sete, o nível já era de 85%. Teve de ser intubada.
"Senti uma movimentação esquisita no quarto e perguntei se iam me intubar. O médico falou que sim O chão se abriu. Pedi para o doutor que me prometesse que ia me trazer de volta, pois eu tenho dois filhos (de 15 e 9 anos) para criar", conta. Foram 30 dias no hospital, 20 deles na UTI e 16, intubada.
Ela conta que, quando acordou, não se reconhecia. "Eu estava com uma cor de pele diferente, não tinha musculatura. A sensação era de que tinha voltado em outro corpo. Só me reconheci por causa das tatuagens."
Raquel havia perdido 25 quilos, além de contrair infecções, trombose na perna e no braço e ficar sem movimentos do pescoço para baixo. Após a alta hospitalar, veio o início do longo período de reabilitação. "Vivi temporariamente como tetraplégica. Tive de reaprender tudo."
A recuperação contou com uma equipe multidisciplinar: médicos, nutricionistas, fisioterapeutas e enfermeiros. Só no primeiro mês, em que dependeu de suplementação alimentar constante, Raquel estima ter gasto entre R$15 mil e R$20 mil. Além disso, teve o apoio do marido, dos filhos e dos pais.
Durante todo o processo, deu graças por poder, durante seis meses, ficar afastada do trabalho. Porém, uma questão a incomodava: "E o que fazem aqueles que não têm as mesmas condições que eu?"
"Não fazem" foi a resposta da enfermeira-chefe do hospital onde a dentista ficou internada em Presidente Prudente (SP). Inconformada, Raquel, ainda sem caminhar, deu em novembro os primeiros passos para a fundação do Projeto Com Vida, que, hoje, faz parte da ONG Instituto Trevisi
Quando a atleta mergulhava nesse novo desafio, uma nova rasteira do vírus. O pai, Hugo Trevisi, referência internacional na área da ortodontia, foi internado com covid-19. Em janeiro, aos 72 anos, ele morreu. "Meu pai era uma pessoa que você dizia: Esse vai viver até os 100 anos! ", lamenta a filha.
Por uma semana, a dor da perda não deixou Raquel fazer nada, mas, como os pedidos de ajuda não paravam de chegar por mensagens no celular, logo voltou à ativa. "Comecei a acolher todo o mundo, acalmar a dor de todos e, consequentemente, a minha também", diz.
Raquel passou então a trabalhar "de segunda a segunda" para o projeto, apesar de lidar com suas próprias sequelas da covid. Após um ano da contaminação, os sintomas físicos persistem: dores, inchaços, esquecimentos e falta de sensibilidade em algumas partes do corpo
Até hoje, já foram mais de 600 famílias acolhidas pela ação, com acesso a profissionais de fisioterapia, medicina, psicologia, fonoaudiologia e nutrição. Os atendimentos feitos pelos mais de mil voluntários cadastrados ocorrem, na maioria das vezes, de forma remota.
Entre os acolhidos está Márcia Parreira, de 48 anos. Quando teve covid, em outubro de 2020, ela chegou a ficar internada apenas por dois dias. No entanto, após uma semana em casa, passou a sentir forte dor no pé. A causa era uma trombose arterial, e ela teve as duas pernas amputadas.
Raquel, que soube dessa história pelas redes sociais, correu para ajudar. Junto da NV Sociedade Solidária, de Franca (SP), o Projeto Com Vida arrecadou verba para custear as próteses. Raquel acompanha a recuperação de Márcia de longe, por meio de aplicativos de mensagem. "Ela acabou de me mandar uma foto de pé!", comemorou, enquanto conversava com o <i>Estadão</i>.
"Depois de quase um ano, consegui ficar de pé e dar meus primeiros passos, felicidade transbordando", conta Márcia. "A Raquel, hoje, faz parte da minha família, mesmo não a conhecendo pessoalmente. Ela está no meu coração e ficará para sempre." Pedidos de ajuda, doações e cadastro de voluntários podem ser feitos pelo site, pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone (18) 99669-3278. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>