Vivia
Depois, sua relação com São Paulo desandou. Sua filha, de 10 anos, permanecia duas horas na condução da escola. Apenas no trajeto de ida. E, outras duas, na volta. Por quatro horas, todos os dias, ela – uma criança – estava ali, presa, durante quatro horas. Depois, ele mesmo passou a se sentir idiota por desperdiçar boa parte do seu tempo com deslocamentos de um ponto a outro da cidade. Tempo que deveria ser usado para estudar ou escrever. Foi quando começou a tentar criar alternativas. E criou. Muitas. Por vinte anos, viveu em Londrina, no Pantanal, na Amazônia.
Há duas semanas, no entanto, teve de retornar a São Paulo. Os motivos eram os mesmos de meio século antes: estudos e trabalhos. Quis usar a ocasião para sentir como funciona, hoje, o velho coração da capital do Estado. Se hospedou num hotel na Rua Guaianazes, quase na esquina da Rua Timbiras, a uma quadra da Avenida São João. Ao descer do táxi, ouviu o motorista, gozador, dizer, com exagero: “Você vai ficar na Cracolândia”.
No dia seguinte, descobriu que estava, na verdade, num gueto de travetis. De muitos travestis. Ao circular por ali, viu, em uma semana, várias pessoas descompondo outras, aos berros pelo telefone celular, dentro de carros, ou caminhando nas ruas. Três cenas que lhe chocaram. Uma senhora, transtornada, tentou agredir um homem aleijado, dentro da Central Telefônica, da Rua 7 de Abril. Um senhor modesto, insultou uma jovem porque o guarda-chuva dela, aberto, bateu levemente na cabeça dele, na Avenida São João. Um jovem alcoolizado espancou um vigilante de uma loja na Rua Barão de Itapetininga.
Nada, porém se comparou com o choque que sentiu ao ver a degradação da Avenida São Luís. A Galeria Metrópole, onde, à noite, se reuniam artistas e intelectuais transformada num terreiro de periferia. Quem imaginaria, lá, alto-falantes a todo volume transmitindo a céu aberto rodas de samba altas horas da noite, num total desrespeito do direito ao sono das centenas de famílias que habitam prédios, onde, um dia moraram capitães da industria paulista como os Lavieri, e, artistas como os que desencadearam o movimento tropicalista? O samba – o bom samba – usado como ariete para ferir com selvageria a educação que Marcelino de Carvalho dava aos paulistas.
Três dias após sua chegada teve de apelar para o Rivotril que já não tomava mais. No entanto, se animou um pouco ao ver um chinês, dono de lan house, oferecer um guarda-chuva a um cliente, quando começou a chover. E um pouco mais ainda quando percebeu que, nas bancas de jornal, da cantada esquina das avenidas Ipiranga com São João, uma jovem prostituta procurava livros das literaturas russa e francesa. Pensou: “Afinal, ainda parece existir alguma forma de vida por debaixo do soterramento da antiga civilização paulistana”.
Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP