Oito minutos e meio eram ainda uma eternidade de meter medo naquele ano de 1971. Só com muito assunto e um talento melódico extraordinário para conseguir fazer com que uma emissora de rádio tocasse a canção inteira sem que seus ouvintes desligassem o aparelho ou, pior, migrassem para outra estação. Hey Jude, com seus mais de sete minutos de duração, havia sido uma conquista de Paul McCartney três anos antes. The End, como tudo dos Doors, um ponto fora da curva em 1967, com inacreditáveis 11 minutos e 43 segundos. E Hotel Califórnia, arquitetada nota a nota como um edifício monumental, só existiria dali a cinco anos.
Mas assunto e melodia eram justamente o que sobrava a Don McLean naquele começo de década e sua American Pie, ele sentia, tinha forças para derrubar um império. A canção saiu em 1971 arremessada como um arpão de muitas pontas, atingindo o coração de um mundo repleto de dilemas sexuais, raciais, políticos, bélicos, éticos, musicais e existenciais. Já havia muito vazio e frustração naquela fenda do tempo pós-Beatles, pós-Woodstock, pós-Martin Luther King Jr., pós-Robert Kennedy e pré-disco music. Ou seja, resumindo – e apesar do Sly and Family Stone -, pós-sonho. McLean pegou seu violão e captou a falta de inspiração planetária com uma sequência poética e melódica crescente das mais inspiradas de seu tempo. American Pie, a simbólica torta de maçã, saiu direto do álbum, o segundo de McLean, para o topo das mais tocadas. E está lá por mais de 50 anos como a canção mais longa a atingir tal posição.
O tempo foi tornando a canção ainda maior do que o que os estadunidenses chamam de "música de fogueira". Além de ter a ternura das folk songs mais dilacerantes, certa em tudo, sua letra começou a ganhar interpretações mitológicas, equivocadas, fake ou, isso também aconteceu, perfeitamente adequadas.
<b>SIGNIFICADOS</b>
Sempre que questionado pelos jornalistas sobre os significados de seus versos, McLean saía pelas beiradas: "Afinal, qual o significado de American Pie?", perguntavam os jornalistas. "Ela significa que nunca mais vou precisar trabalhar", respondeu uma vez. Sua lógica era simples. Ao explicar qualquer coisa, McLean esvaziaria a magia das possibilidades: "Você encontra muitas explicações sobre minhas letras, nenhuma delas dita por mim… Sinto deixar todos vocês assim no escuro, mas descobri há muito tempo que compositores devem se expressar e seguir em frente, mantendo um silêncio respeitoso".
Aos 76 anos de idade, já com uma estrela garantida no Rock and Roll Hall of Fame, o autor viveu para ver um documentário inteiro dedicado a sua música. The Day The Music Died, ou O Dia em Que a Música Morreu, uma frase da canção e o nome pelo qual ficou conhecida uma das tragédias mais chocantes da história do rock, está na plataforma Paramount+ com boas histórias, bons entrevistados e uma parte em que a letra é dissecada para que, na medida do possível, as verdades sejam reveladas ou reforçadas. A mais evidente delas confere: a canção foi dedicada a Buddy Holly e feita ainda por um coração sangrando pela morte do ídolo. McLean ficou sabendo da morte de Holly enquanto trabalhava como entregador de jornais na manhã de 3 de fevereiro de 1959. A letra diz: "February made me shiver / with every paper Id deliver", ou "Fevereiro me dava calafrios a cada jornal que eu entregava".
<b>FAKE NEWS</b>
Coisas a serem demolidas: Elvis Presley não é o "rei" citado na canção; a "garota que cantava blues" não era Janis Joplin e Bob Dylan não era o "bobo da corte". A fake news foi tão longe que chegou ao próprio Dylan, levada por um repórter da revista Rolling Stone: "Um bobo da corte?", disse Dylan. "Claro, o bobo da corte escreve músicas como Masters of War, A Hard Rains Gonna Fall, Its Alright, Ma. Eu só posso pensar que ele está falando de outra pessoa." Ao mesmo tempo, o filme confere que "o dia em que a música morreu" diz respeito ao acidente aéreo que levou as vidas em franca ascensão de Buddy Holly, Ritchie Valens e The Big Bopper, além do piloto Roger Peterson.
A solução da gravadora para lançar a longa canção também é lembrada. Um single trazia a primeira metade da música no lado A enquanto a segunda era escutada no B. A canção era tão boa que as pessoas viravam o álbum apenas para ouvir a sequência da história. Nenhuma das versões seguintes teria a mesma audácia. Garth Brooks, um de seus versionistas e entrevistado no filme, diz que a canção é "sobre esse impulso de independência, esse impulso de descoberta, de acreditar que tudo é possível".
John Meyer, Jon Bon Jovi e mesmo Madonna, avassaladora, também fizeram suas versões, mas nenhuma a ponto de superar a força afetiva imposta em 1971. "Para mim, American Pie é o elogio a um sonho que não se realizou", diz no filme o produtor da música, Ed Freeman. "Fomos testemunhas da morte do sonho americano."
McLean diz que "o país estava em algum estado avançado de choque psíquico. Toda essa confusão e tumultos e cidades em chamas." Sua ideia, conclui afinal, era a de conseguir fazer uma canção sobre os Estados Unidos de uma forma que ninguém havia feito. E ele conseguiu.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>