Mundo das Palavras

Um homem sensível

A história foi contada pelo poeta Thiago de Mello, num depoimento sobre José Lins do Rego. O escritor estava hospitalizado, no Rio de Janeiro, quando soube que uma menina pobre havia sido surpreendida na porta de um apartamento de classe média, pela dona do imóvel, quando tentava roubar a garrafa de leite, deixada ali pelo leiteiro. A própria mãe dela a instruíra a fazer aquilo. 


A dona do apartamento obrigou a menina a entrar no imóvel e, em seguida, telefonou para a Polícia. Desesperada, a criança se jogou pela janela. 


Dias depois de tomar conhecimento daquela tragédia – prosseguiu o poeta -, o escritor lhe disse que já sabia o que fazer. José Lins pediu a Mello que decorasse algumas frases que havia elaborado. Mello deveria repeti-las durante um telefonema àquela senhora.  O número do telefone dela já estava em poder do escritor.


As primeiras frases eram mais ou menos assim: “Estou telefonando para parabenizar a senhora pelo seu gesto”, “Quero dizer que estou pronto para dar à senhora todo o apoio de que vier a precisar”, “Sinta-se à vontade, comigo”. Quando a senhora começasse a insistir em que Mello revelasse sua identidade, o poeta deveria dizer a última frase preparada por Lins, de modo incisivo.


E assim ocorreu. A chamada telefônica foi feita. A senhora atendeu. A conversa transcorreu como José Lins havia previsto. Por fim, ela insistiu na pergunta: “Mas, quem é o senhor?”.


Mello respondeu, com toda sua contundência, como queria o escritor, antes de desligar abruptamente o telefone: “É o Satanás, sua desgraçada!”. José Lins riu tanto ao ouvir o desfecho que havia programado a ponto de rolar pela cama do hospital.


Que alma é esta a de um homem que se comove com a humilhação sentida por uma criança desconhecida, e, depois, a vinga através de um artifício divertido, mas inofensivo? Certamente é a alma de uma pessoa sensível, alguém hoje pouco valorizado. Afinal, quem ainda fala das pessoas sensíveis? Quem dá atenção a elas? Há poucas décadas, contudo, filhos com inteligência e sensibilidade era tudo que pais civilizados queriam. Desde então, outra característica humana, mais ligada à Economia, tem sido valorizada no convívio social: a iniciativa própria, típica do empreendedor. Sem dúvida, também dotada de valor. Pois, para que a Humanidade assegure sua subsistência e seu progresso material é necessário que existam pessoas capazes de abrir novos caminhos no mundo dos negócios.


Para criação literária, porém, sair do eixo da própria existência para se colocar na situação de outra pessoa, como fez José Lins do Rego, continua sendo uma capacidade indispensável. Não se trata, é claro, de exigência moral. A sensibilidade é, na verdade, um poderoso ponto de apoio para a criação artística, embora seja insuficiente, se não for acompanhada de habilidade e criatividade no uso de determinada linguagem. A verbal, por exemplo, no caso dos escritores e dos poetas. De qualquer modo, sair do eixo da própria existência não é algo que venha sendo muito apreciado, em nossa vida social, ultimamente. 


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP

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