Um dos aspectos mais relevantes da retrospectiva de Paul Klee no CCBB, aberta ao público a partir do dia 13, é a preocupação quase didática da curadora Fabienne Eggelhöffer de apresentar sua obra de modo que até mesmo o espectador não familiarizado com ela possa estabelecer relações entre seu repertório artístico antes e depois da viagem que o artista suíço fez pela Tunísia, em 1914, considerada o marco zero de sua linguagem abstrata.
Também a passagem pela Bauhaus foi tão importante para Klee como a expedição tunisiana ou a descoberta, em 1912, do orfismo de Delaunay e do cubismo de Picasso em Paris, ou ainda o contato com a arte expressionista do grupo Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), do qual se aproximou ao chegar em Munique, ainda jovem. “Olhando para esses artistas, ele transformou sua teoria em prática, e os visitantes da exposição vão descobrir como Klee literalmente abriu um novo capítulo na história da arte ao se afastar do naturalismo”, observa a curadora.
Essa ruptura ocorreu durante a mencionada viagem pela Tunísia, ao lado do pintor suíço Louis Moilliet (1880-1962) e do alemão August Macke (1887-1914), seus amigos. Na retrospectiva, um exemplo dessa passagem para abstração é o óleo sobre cartão Mit der Rotten Fahne (Com a Bandeira Vermelha, 1915), composição geométrica em que uma bandeira é desconstruída. “Klee sempre se moveu entre dois polos, entre a realidade e a fantasia, entre a figuração e a abstração, entre o conceito e a espontaneidade, entre o logos e a intuição”, diz a curadora, não esquecendo sua discreta militância política – perseguido pelo regime nazista, ele voltou para a Suíça em 1933. “Em 1936 ele assinou uma aquarela com o título Calígula, referência explícita a ditadores como Hitler”, cita como exemplo.
Algumas obras raramente vistas estarão na retrospectiva de Paul Klee no CCBB, projeto produzido pela Expomus com apoio da Lei Rouanet. Entre essas estão alguns nus artísticos de juventude, feitos no ateliê do professor Heinrich Knirr de Munique, entre 1898 e 1901 – Klee não era lá muito bom em anatomia, como atestam seus desenhos da musculatura dos braços e pernas presentes na mostra, todos dessa época. Há também alguns retratos de família, autorretratos e uma seção dedicada a explorar as relações entre o pintor e o teatro – réplicas de fantoches criados para entreter o único filho, Félix Klee, que se tornaria diretor de ópera.
A retrospectiva apresenta ainda um fac-símile de Angelus Novus (hoje no Museu de Israel em Jersualém) e mais 15 desenhos sobre essa temática, analisada em texto pelo filósofo Walter Benjamin (proprietário da primeira versão do Anjo, que passou às mãos de Adorno e Gershom Sholem após sua morte). Esse “anjo da história” a olhar assustado para um mundo em ruínas é também o testemunho de um artista sensível que, apaixonado por música, fez de sua pintura uma delicada, mas robusta, sinfonia.
O filósofo Adorno, a exemplo de Klee, tinha com a música uma relação umbilical. Sobre Klee ele costumava dizer que sua arte não apenas mimetizava a linguagem escrita, mas que seus trabalhos eram como hieróglifos de difícil decodificação. Sua obra seria como um puzzle sem solução. A curadora discorda parcialmente de Adorno: “Klee, como ele mesmo esclareceu, nunca teve interesse em transmitir alguma mensagem por meio de seus desenhos e pinturas”, observa. “Sim, ele deu título para quase todas as 10 mil obras que criou, mas insistia que esses não explicavam o que estava reproduzido”, continua, concluindo que não há uma única solução para esse jogo, “mais muitas soluções”.
Prova dessas múltiplas leituras é que os seguidores de Klee tanto podem ser encontrados entre os artistas de tendência construtiva como expressionista, além de sua influência se estender aos surrealistas (André Breton o incluiu na primeira exposição surrealista, em 1925). Mark Rothko, que aparentemente pouco deve a ele, filia-se a essa corrente espiritual moderna iniciada por Kandinski, para o qual a arte deveria evocar um mundo metafísico – no caso de Rothko, a fenomenologia parece mais apropriada para explicar seu mundo. Em todo caso, a série de anjos criados por Klee em 1939 e exposta na retrospectiva é o testemunho de sua crença nesses seres híbridos – metade homem, metade mensageiro celestial – como intermediários entre o humano e o transcendental, enfim, uma representação alegórica da nossa natureza ambígua.
Para Klee, romper com a representação realista de objetos e da natureza, buscando formas de expressão isoladas do mundo material, não era um mero capricho. Era um compromisso que assumiu ao conhecer o texto paradigmático de Kandinski (Sobre o Espiritual na Arte, 1911) na época em que o russo integrava o movimento expressionista alemão Der Blaue Reiter (entre 1911 e 1914). Tanto assim que, em 1920, ano do advento do Angelus Novus, Klee redigiu o próprio manifesto espiritual, Credo Criativo, que começa com o mandamento “a arte não reproduz o visível, torna visível”. Klee traça uma correspondência analógica para essa dinâmica e diz que a história bíblica da criação do mundo “é uma boa parábola para o movimento”, concluindo que “o trabalho artístico é, antes de tudo, gênese – ou seja, jamais é experimentado como resultado”.
Em sua cosmovisão, Klee evitou os conceitos de bom e mau, que, segundo ele, criam um estado de estabilidade ética pouco favorável ao desenvolvimento da arte. “Os autorretratos de Klee conduziram a uma conclusão equivocada sobre ele, a de que foi um artista voltado para si mesmo, mas queremos mostrar que Klee não desenvolveu sua arte isoladamente, e sim olhando para outros artistas, como Delaunay”, finaliza a curadora.
PAUL KLEE
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As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.