Estadão

Uma poeta selvagem que não se curvou diante de nada em O Antipássaro

Uma mulher agoniada, vendo o mundo através dos óculos fundo de garrafa e sentada em uma cadeira de balanço, como se fosse uma velha. Essa foi a primeira imagem que o jovem Nilton Bicudo, então estudante de direito, guardou da poeta paulista Orides Fontela (1940-1998) ao conhecê-la em um programa de televisão em 1986. Falando pelos cotovelos, ela reclamava da dificuldade de se sustentar com a aposentadoria de professora, lamentava a solidão de viver em uma quitinete cercada de vizinhos apáticos e, ciente do seu valor, comentava o processo criativo com evidente arrogância. Densa, irônica e trágica, Orides parecia uma personagem. Era uma cena pronta.

Confinado no auge da pandemia do coronavírus, o ator Nilton Bicudo, de 56 anos, conhecido pela versatilidade ao transitar entre os tipos cômicos e estranhos, recorreu ao livro que reunia a poesia completa de Orides. Nas caminhadas pelo Parque Buenos Aires, em Higienópolis, exercitava a cabeça rememorando versos da autora, chegara a hora de levá-la ao teatro. "Orides era genial e selvagem, livre e anárquica, parecida com o dramaturgo e diretor Fauzi Arap (1938-2013), outra das minhas paixões artísticas", diz.

Conduzido pelo diretor Elias Andreato, Bicudo estreia nesta segunda, 28, o monólogo <b>O Antipássaro</b>, no Auditório da Unisa, em São Cecília, acompanhado do pianista Jonathan Harold, que executa a trilha sonora ao vivo. O ator joga luz sobre uma poeta que, mesmo reconhecida no meio intelectual, nunca desfrutou dos louros, muitas vezes por culpa dela mesma. Orides era arisca, não se curvava diante de nada ou buscava agradar o mercado editorial. "Ela pagou um preço alto, morreu de tuberculose, como indigente, em um sanatório de Campos do Jordão, tudo nela pode ser comparado aos poetas do século 19", completa o ator.

De barba, camisa e saia, Bicudo desconstrói a imagem óbvia que poderia apresentar ao público, semelhante àquela da entrevista da televisão. Andreato fugiu de qualquer aproximação física em busca de uma androginia e garante que nunca viu Bicudo tão empenhado. É a terceira vez, depois de Coisa de Louco (2012) e Myrna Sou Eu (2013), que ele dirige o amigo em um solo. "Ele tem uma facilidade natural para o humor, mas aqui percorre uma intensidade diferente, colocá-lo de saia faz parte dessa dualidade, inclusive para reforçar o discurso político de Orides", declara o diretor.

Andreato afirma que a poeta sofreu em um universo acadêmico machista e, por isso, adotou a postura radical que permeou sua obra. "Orides era seca de amor, de afeto e passou a se orgulhar de viver à margem", conta ele.

<b>RESISTÊNCIA</b>

O título <i>O Antipássaro</i> faz referência a essa resistência de Orides em ver sua poesia voar, de não se transformar em algo palatável e, segundo Andreato, essa é uma afinidade dela com Bicudo. "Niltinho faz questão de preservar uma estranheza diante dos outros, tem uma alma velha e não se abre para nada e ninguém", lembra o diretor.

<i>O Antipássaro</i> estreia na sequência de um trabalho diferente na carreira de Bicudo. Ele participou dos dez primeiros capítulos da novela <i>Todas as Flores</i>, produzida pelo Globoplay, e sentiu uma significativa repercussão na pele do excêntrico milionário Raulzito Martinez. "Gostei muito de perceber a aceitação do público, mas sou vacinado contra qualquer deslumbramento".

O Antipássaro
Auditório da Unisa.
R. Dr. Gabriel dos Santos, 30,
Santa Cecília. 2ª a 5ª, 20h. Gratuito. Ingressos distribuídos uma hora antes. Até 8/12.

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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