Estadão

Uma visita aos truques do bas fond parisiense

Uma Paris elétrica, noturna e povoada de predadores e outsiders é o que se vê na ótima série Vernon Subutex, disponível na plataforma Reserva Imovision. A série é adaptada dos dois primeiros volumes da trilogia de mesmo nome da "polêmica" escritora Virginie Despentes.

Valem as aspas na palavra "polêmica" porque, na verdade, trata-se de um eufemismo. Virginie atira os fatos no rosto do leitor, diz o que pensa na cara do interlocutor e não mede palavras para transmitir sua visão de mundo. É uma espécie de protótipo de escritora maldita, porém cheia de talento. Acaba de lançar novo romance, Cher Connard ("Caro Babaca", em tradução livre), que tem sido muito elogiado pela crítica francesa. Cogitado, talvez, para o Goncourt, principal prêmio literário do país.

O que se pode dizer da série é que está à altura do livro – no Brasil, apenas o primeiro volume foi lançado, pela Cia. das Letras, com o título de A Vida de Vernon Subutex. No entanto, Despentes, em entrevistas, tem se mostrado um tanto frustrada. "Uma visão burguesa do proletariado", disse, em entrevista à revista Society.

De fato, o romance é mais cru. Mesmo assim, não se pode acusar a série de ter amaciado o texto. Continua indigesto – e isto é um elogio. Continua a ser a história de um perdedor da sociedade, o ex-dono de uma loja de discos Vernon Subutex, que decaiu na vida e se tornou uma espécie de sem-teto. Um clochard, na denominação parisiense.

<b>Despejado</b>

Vernon, interpretado por Romain Duris, é o antigo proprietário da loja de discos Revolver, famosa em seu tempo, e em torno da qual gravitavam roqueiros, candidatos e candidatas a artistas, groupies, etc. Era um tempo rock n roll e vivia-se em consonância com ele. A fila andou, o vinil saiu de moda, a maluquice também, chegaram os CDs, depois as plataformas de streaming, Vernon faliu, decaiu e foi acabar no minúsculo apartamento de onde é despejado assim que começa a série.

Enquanto as contas de Vernon eram pagas por um amigo famoso – o roqueiro Alex Bleach -, não havia por que se preocupar. Acontece que Bleach morre de repente e deixa seu amigão órfão. Expulso do apartamento, com apenas uma mochila nas costas, ele tem consigo um trunfo – três fitas de gravação com as últimas declarações do roqueiro morto, que podem valer uma fortuna nas mãos certas. Mas não apenas. Um produtor corrupto teme que Bleach possa ter falado alguma coisa comprometedora a seu respeito e decide apossar-se das fitas para destruí-las.

Esse é o eixo de que se serve Despentes – e, portanto, a série -, para fazer um retrato sem piedade de uma geração, de uma cidade e um estágio catastrófico da cultura humana.

Vernon será a linha de fuga desses encontros com os personagens que encontra para lhes pedir abrigo. Há, na série criada por Cathy Verney, o antigo amigo, Xavier (Philippe Rebbot), hoje roteirista medíocre e preso a uma mulher rica e dominadora. O produtor, Lucas (Laurent Dopalet), que tem uma secretária encantadora, mas também uma auxiliar da pesada, uma mulher lésbica cheia de truques que chama a si mesma de Hiena (Céline Sallette). Aparece outra mulher rica, disposta não apenas a acolher o desabrigado, mas a virar sua amante e tornar-lhe a vida insuportável.

<b>Personagens</b>

De uma maneira ou de outra, todos os personagens, homens ou mulheres, jovens ou velhos, são execráveis. Patifes, covardes e sempre prontos a usar o próximo para em seguida descartá-lo.

É verdade que Despentes, como acontece em geral com autores "malditos", só tem olhos para a sordidez. No meio desta, admite nuances, ou seja, modos diversos de ser sórdido. Mas qualidades como o bem, a ternura, a piedade, o amor são sistematicamente abolidas. Ou, pelo menos, colocadas entre parênteses, em suspensão, como virtudes hipotéticas, no limite inalcançáveis.

Nesse sentido, a série parece mais nuançada que a prosa cheia de arestas de Virginie Despentes. E isso se deve, provavelmente, a Duris, um ator que sabe mesclar sedução e fragilidade, calhordice com certa inocência. Talvez por isso, a série mostre, pelo menos em alguns momentos, o humor pouco presente no romance. E, com senso de humor e uma ponta de ternura, as coisas funcionam melhor.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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