O governo brasileiro anunciou uma mudança na política de acolhida humanitária para afegãos sob o argumento de que o Brasil tem se consolidado como uma porta de entrada para imigrantes que, fugindo do regime fundamentalista do Talibã, buscam emigrar aos Estados Unidos em rotas perigosas e, por vezes, mortais. A decisão pode diminuir a chegada de afegãos a Guarulhos, porém implica diretamente no conceito de acolhimento humanitário.
Portaria publicada nesta terça-feira (26) estabelece que, a partir de outubro, vistos só serão concedidos aos afegãos caso seja comprovada a disponibilidade de vagas em abrigos para recebê-los —o que se daria por meio de acordos de cooperação firmados entre organizações da sociedade civil e o Estado.
A alteração ocorre meses após um surto de sarna entre imigrantes do país da Ásia Central que viviam no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos. A crise sanitária, consequência da falta de vagas em abrigos, escalou as críticas ao acolhimento fornecido aos afegãos, conforme mostra reportagem publicada pela Folha de S.Paulo.
Em nota enviada ao jornal, o prefeito de Guarulhos, Guti, demonstrou preocupação em relação à decisão, que não inclui questões importantes. A cidade —porta de entrada para 98% dos afegãos que chegam ao país— defende a manutenção da acolhida humanitária.
Guti criticou o fato de o texto não detalhar outros mecanismos de acolhimento. “É preciso incluir a interiorização dos migrantes, a fim de encaminhá-los para outros municípios, sem sobrecarregar um ou outro, como ocorre hoje com Guarulhos.”
Ativistas e especialistas em migração também estão preocupados, já que a medida se assemelha a um criticado mecanismo da política migratória americana: o “sponsor”, uma exigência de que, para pleitear visto, o migrante comprove antecipadamente que tem algum empregador ou lugar para ficar no país de destino.
Ainda na reportagem da Folha, secretário nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, afirma que a mudança busca aprimorar o acolhimento aos afegãos, que ainda não têm uma base sólida no Brasil —como é o caso de venezuelanos e angolanos— e enfrentam ainda uma barreira linguística.
“Percebemos que as especificidades afegãs dificultam o acolhimento e que, indiretamente, estávamos colocando essas pessoas em risco”, diz. “Prefiro que os que recebam o visto se integrem verdadeiramente ao nosso país, com acolhimento, emprego e aulas de português por meio do trabalho das organizações, e não simplesmente abrir a fronteira e colocar a vida dessas pessoas em risco.”
A ideia, argumentaram o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Itamaraty em comunicado, é que vincular as emissões de vistos à disponibilidade de vagas promova acolhimento planejado e seguro.
Elogiada internacionalmente, a política migratória brasileira, apelidada como “portas abertas” por ter um mecanismo amplo de acolhimento, tornou-se ponto de preocupação de organizações desse setor. Especialistas vêm observando a ressignificação do Brasil, que deixa de ser destino para ser porta de entrada aos que têm como objetivo subir as Américas em direção aos EUA —em um trajeto, muitas vezes, mortal.
Esse cenário fica evidente no caso dos afegãos que emigram em massa desde que o Talibã retomou o poder em agosto de 2021 e instaurou um regime fundamentalista islâmico que suprimiu, em especial, os direitos das mulheres. De setembro daquele ano até agosto passado, o Brasil emitiu quase 9.400 vistos de acolhida humanitária para afegãos, um mecanismo que agiliza a permissão para que emigrem.
Nesse período, 8.651 imigrantes afegãos entraram no Brasil, segundo números compilados pela ONU e pelo OBMigra, o Observatório das Migrações Internacionais. Mas quase 20% deles —1.632— também já deixaram o país. As principais portas de saída são Oiapoque, no Amapá, e Assis Brasil, no Acre, pontos-chave na rota migratória que busca subir por terra até a América do Norte ou mesmo à União Europeia, via oceano Atlântico.
Segundo o secretário Arruda Botelho, esses números não refletem toda a realidade. Ele afirma que cerca de metade dos afegãos que entram no Brasil emigra pouco tempo depois. A subnotificação se deve, entre outras coisas, ao fato de que muitos saem por pontos da fronteira terrestre onde não há controle estatístico.
E o caminho que esses imigrantes fazem a partir de então também deixa registros no continente. Desde o início de 2022 —meses após a volta do Talibã e as primeiras chegadas de afegãos no Brasil—, esse grupo começou a compor o fluxo de migrantes que cruzam o estreito de Darién, a chamada “selva da morte” entre o Panamá e a Colômbia.
Afegãos estão na nona posição entre as principais nacionalidades que cruzaram a selva de janeiro a agosto deste ano: foram ao menos 2.509, segundo dados oficiais do Panamá. No topo do ranking ainda estão os venezuelanos, numa cifra muito mais expressiva —201 mil.
João Chaves, coordenador de migrações e refúgio da DPU (Defensoria Pública da União) em São Paulo, afirma que os argumentos que servem de justificativa oficial para a mudança nas regras são válidos. Mas diz que as possíveis consequências são preocupantes.
“É preciso cautela para que essa não se torne uma forma de resolver os problemas estabelecendo uma espécie de funil”, pondera. “O fato de o Brasil ser um país de migrantes em trânsito não pode diminuir a emissão de vistos e a execução da política humanitária.”
Miguel Freire Couy, voluntário do coletivo Frente Afegã, diz que a alteração “varre o problema para baixo do tapete”. “É complicado condicionar uma ajuda humanitária a uma burocracia pública. Isso leva tempo. E essas pessoas [os afegãos] não têm tempo. Tempo para eles é uma bomba-relógio.”
Mais de 35 ONGs com trabalhos voltados para migração, como a Conectas Direitos Humanos, a Cáritas Arquidiocesana e a Missão Paz, também se posicionaram em carta pública que será divulgada nesta quarta-feira (27) e que foi antecipada à Folha.
As organizações afirmam que a restrição adicional pode ter efeito colateral indesejado. “É de domínio público que restrições de entrada não evitam que as pessoas deixem de sair de seus países, mas sim as expõem ainda mais a situações de exploração pelas redes de contrabando de migrantes”, diz o texto.
Com menos vagas em abrigos do que a demanda urge, ainda é possível ver afegãos vivendo no aeroporto de Guarulhos. A Frente Afegã, que atua no local, relata que havia 88 deles na última sexta-feira.
Outra mudança promovida pela portaria são os locais nos quais afegãos podem pedir o visto. Agora, a demanda poderá ser apresentada somente nas embaixadas do Brasil em Teerã, no Irã, e em Islamabad, no Paquistão. Antes, também era possível solicitá-los nas embaixadas de Moscou, na Rússia; Ancara, na Turquia; Doha, no Qatar; e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.