Mundo das Palavras

Uso distorcido de palavras nas eleições


Uma pessoa defende o enfrentamento pelos governantes políticos do país do grave problema de saúde pública que se constitui, hoje, o uso do crack? Por isto, se pode dizer que ela é favorável ao consumo da droga? Trazer à tona este preocupante problema social do Brasil atual, através de declarações a jornais e emissoras de rádio e televisão, é fazer pregação do uso da droga? Pode-se dizer que aquela pessoa é “a favor” do uso dela porque aponta para a sua disseminação?


 


Obviamente, não.


 


No entanto, é isto o que está ocorrendo em relação ao aborto – esta outra chaga da sociedade brasileira – na campanha para a eleição presidencial. Há alguns dias, O Globo publicou uma entrevista com Paula Viana, pesquisadora deste assunto em cinco estados: Rio de Janeiro, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Bahia e Pernambuco. Paula revelou: “Mulheres de todas as classes sociais, idades, escolaridades e religiões abortam. Muitas acabam no serviço público de saúde, onde são negligenciadas, julgadas e condenadas, o que contribui para que o número de mortes seja alto”.


 


Outro pesquisador, Mário Monteiro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, constatou que, somente no ano de 2009, ocorreram no país 942.713 abortamentos induzidos. Para chegar a este número ele levou em conta dados do Sistema Único de Saúde – SUS. O Globo acrescentou: de acordo com o SUS, em 2009, 183 mil e seiscentas mulheres receberam atendimento porque abortaram, tiveram complicações e necessitaram de curetagem. 


 


Paula Viana resumiu numa frase sua preocupação com o que vem ocorrendo na campanha presidencial: “O debate não devia tratar de quem é contra ou a favor, mas de como é possível resolver um problema de saúde”.


 


É óbvio que os profissionais de marketing político que planejam a participação de cada candidato nestes debates sabem perfeitamente que ninguém pode defender o extermínio de fetos humanos, como não pode igualmente defender o uso do crack. A não ser que queira se revelar um psicopata anti-social, carente de imediata internação num hospital de Psiquiatria Forense. Os “marqueteiros” sabem disto. Mas, sabem também que a grande parcela da população brasileira, por formação religiosa, jamais aceitaria a ocupação de um cargo público por quem violente sua consciência moral com uma proposta aparentemente criminosa. Nestas circunstâncias, então, parece um golpe de esperteza expor à repulsa dos eleitores quem se preocupe com a questão do aborto transformando-o em alguém “a favor” do abortamento. A falta de escrúpulo na manipulação do sentimento religioso – um fenômeno recorrente da nossa vida social – se transforma numa suposta defesa da moralidade.


A manipulação ocorre como decorrência de um jogo intencionalmente dúbio das palavras “contra” e “a favor”. Por isto, no seu editorial da edição do último dia 10, a Folha de São Paulo afirmou: “O obscurantismo se estabelece na campanha eleitoral quando o que se procura é antes confundir o eleitor do que esclarecer as próprias posições”.


 


Este não é o único caso de falta de escrúpulos no uso das palavras, nesta campanha. Infelizmente. Nela não há anjos em nenhum dos lados em disputa. O conjunto binário “contra/a favor” tem sido usado com semelhante má-fé nas discussões de outras complexas questões como “as privatizações”, por exemplo.



 


 


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP

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