Há mais nas sombras da Tropicália do que dizem as vãs filosofias. Um documentário recente sobre o designer Rogério Duarte, por exemplo, deixa solto um fio que pouca gente tem coragem de puxar. O movimento que na música teve de Gil e Caetano na proa não teria seguido o grau de politização acordado no início, na visão de uma das pedras originais do cenário, por interesses comerciais.
Outros pontos seguem incontestáveis. O álbum Tropicália, ou Panis et Circensis, gravado em maio e lançado em julho de 1968 por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, com letras de Torquato Neto e arranjos de Rogério Duprat, foi quase tudo ao mesmo tempo: premonitório do AI-5 que viria em dezembro de 1968; transformador do discurso da MPB nacionalista de Elis, Edu Lobo e Geraldo Vandré em uma estética planetária; e a proposta mais liberta de limites e preconceitos da linha do tempo da música brasileira.
Cinquenta anos depois, o cantor Rubi e a cantora Alice Caymmi, dirigidos por Lucas Santanna e com intervenções do professor Frederico Coelho, da PUC-Rio, seguem até sábado, 16, no palco do Sesc Santo Amaro, para refazerem o repertório de Panis et Circensis. “A obra é atemporal”, diz Alice, 28 anos, quase metade da idade do álbum. “Apesar de estarem vivendo um contexto político específico, os temas ali não falam só de repressão social. São questões paternas, da juventude.” Sua parte será marcada por músicas como Baby (de Caetano, cantada por ele e Gal Costa no original); Mamãe Coragem (de Caetano e Torquato Neto, também com Gal) e Enquanto Seu Lobo Não Vem (outra de Caetano, com ele, Gil e Rita Lee na gravação). “Ser chamada de tropicalista é um elogio”, diz Alice, referindo-se a uma forma como também é vista diante de seus três discos lançados até aqui. Se é assim, a neta de Dorival, sobrinha de Nana e de Dori e filha de Danilo, se torna a primeira tropicalista de sangue Caymmi, quase uma transgressão genética.
O bloco tropicalista surge como uma nova visão de esquerda, até então dominada pelas propostas nacionalistas puro sangue dos artistas que preferiam marcar seus territórios negando as influências sobretudo norte-americanas. Um ano antes, em 1967, Elis Regina, MPB-4, Gil e Edu Lobo haviam manifestado seus descontentamentos contra o que viam como uma importação cultural na Passeata Contra a Guitarra Elétrica pelo centro de São Paulo. Gil, que um ano depois iria se tornar um dos pais do tropicalismo, declararia que não acreditava em nada daquele discurso, mas que estava ali “por causa de Elis”. “Eu era apaixonado por ela.” Outros manifestantes daquela noite ainda pensam como há 50 anos.
“A Tropicália vem então com ideias de uma música universalizante”, diz o professor Fred Coelho. É uma nova forma de dizer que algo vai mal, também poeticamente, sem a objetividade de um “vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, de Vandré, lançada no mesmo 68. “Vamos passear na floresta escondida, meu amor / Vamos passear na avenida / Vamos passear nas veredas, no alto meu amor / Há uma cordilheira sob o asfalto”, canta Caetano, nostradâmico, em Enquanto Seu Lobo Não Vem.
Cinco meses depois do lançamento do disco Panis et Circensis, cinco dias depois de promulgado o AI-5, a polícia política prende Gil e Caetano sem acusações formais e os encarcera por quase dois meses. Ao serem soltos, em fevereiro de 1969, seguem em regime de confinamento para Salvador para, em julho, serem psicologicamente forçados a deixar o Brasil. Vão para Londres e ficam por lá até 1972.
“O disco trouxe a radicalização de algumas ideias da esquerda”, diz Coelho. O álbum, curiosamente, teve seu simbolismo mais popularizado do que suas músicas e, como diz o professor, tem em suas linhas imagens pesadas. Em Lindoneia, existe a “Lindoneia desaparecida na igreja, no andor”; em Panis, as “pessoas na sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer”, e em Parque Industrial, de Tom Zé, o “jornal popular que nunca se espreme porque pode derramar, um banco de sangue encadernado que já vem pronto e tabelado”.
Tropicália – O Disco, com Alice Caymmi e Rubi
Sesc Santo Amaro
Rua Amador Bueno, 505. Hoje (15), às 21h. Sáb. (16) às 20h. Preço: R$ 7,50 a R$ 15
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.