Estadão

VP foi do menino competitivo a conselhos a Guardiola antes do Corinthians

Vítor Pereira, hoje técnico do Corinthians, não entendeu quando, no primeiro ano de faculdade, recebeu textos de filosofia, economia e medicina, dentre outros temas, do professor Vitor Frade. O aluno Vítor e os seus colegas não sabiam porque deveriam estudar outros assuntos que não o esporte. A turma tinha dificuldade para compreender alguns dos tópicos abordados em sala de aula. Mas aí veio o "estalo".

"No segundo ano, parece que se fez luz. Tudo começou a fazer sentido. Porque comecei a entrar numa lógica de pensamento que punha em causa muitas das coisas que se diziam. Porque é isso que ele (Frade) transmite. Ele transmite a capacidade de nós refletirmos sobre as coisas", contou o treinador ao site português Tribuna Expresso.

Na infância, Vítor Pereira era um garoto acostumado a jogar bola o dia todo no bairro da Mata, em Espinho, norte de Portugal, e voltava todo sujo para casa, o que gerava problemas com os pais. À tarde, por vezes, cabulava aula para assistir aos treinos do Espinho, o time da cidade, já demonstrando seu interesse pelo estudo do jogo. Nos fins de semana, trabalhava, assim como os outros meninos da sua idade, pois a vida da família não era fácil. "Não havia muitas oportunidades onde nasci", contou, em entrevista.

O pai também trabalhava aos sábados e domingos, mas quando conseguia dias de folga, levava o pequeno Vítor ao estádio das Antas, antiga casa do Porto. Admirava vários jogadores como o peruano Cubillas, que jogou no time portista na década de 1970. O caminho para o estudo foi o seu norte até pelas poucas oportunidades na região. "O futebol foi quase como minha âncora. Naquele meio, muitos desviavam… e o futebol foi sempre me segurando", disse ao Porto Canal. No Brasil desde o começo do ano, Vítor ganhou a torcida do Corinthians com sua simpatia e trabalho e também tem o vestiário nas mãos.

Foram as adversidades – e a disposição para superá-las – que o moldaram. A natureza competitiva vem desde os tempos de criança. Os garotos estavam sempre apostando algo, não só no futebol. Sua força interior vem desse estímulo. Como pai, não deixa os filhos ganharem nem se desculpa pelo comportamento exigente.

Como jogador, era chato, como ele mesmo já revelou. Sempre palpitando e orientando seus companheiros. Foi o atleta polivalente que não se destacava muito em nenhuma posição. Mas atuar no ataque, meio-campo e defesa fez com que ele entendesse melhor o jogo.

No início de carreira como técnico, alternou entre trabalhos em times pequenos e o cargo de professor de Educação Física em uma escola. Também atuou na formação do Porto, o clube do coração, período em que desenvolveu melhor seu conhecimento. Ele saltou de patamar ao virar assistente-técnico da equipe principal portista. Foi auxiliar do treinador André Villas-Boas, que liderou o time nos títulos do Campeonato Português, Taça de Portugal e Liga Europa. No ano seguinte, Villas-Boas foi para o Chelsea, da Inglaterra, e Pereira assumiu o comando do Porto.

Com o sarrafo no alto, a pressão era grande. Além disso, vários destaques da equipe portista sonhavam em se transferir para ligas maiores e perderam o foco. Nos dois títulos portugueses conquistados, Pereira só teve uma derrota em 60 partidas. Os duelos de alto nível diante do Benfica, de Jorge Jesus, foram marcantes – intensos no campo e nas coletivas.

"O Vítor é ótimo treinador, vive o jogo intensamente mesmo. Ele participa bastante, é muito próximo dos atletas. Não dá voltas, é direto. Ele é muito aberto para conversas, adora os brasileiros. A imagem pode parecer de um homem mais sério e bravo, mas é muito carismático. Quando eu vi que ele acertou com o Corinthians, sabia que o clube tinha feito uma bela escolha", conta Leandro Salino, que foi campeão grego com Vítor Pereira no Olympiacos e, antes, rivais em Portugal.

"Ele trabalha muito sério. No dia a dia, treina muito, cobra demais e consegue tirar o melhor de cada atleta. Falam que ele muda muito o time, mas ele fez isso no Porto, no Olympiacos, e foi campeão nos dois. Tinha o campeonato nacional, Copa e Liga dos Campeões. Então, ele queria todos preparados e bem fisicamente".

Anos antes de fazer sucesso, Vítor Pereira já havia experimentado um momento de sofrimento como treinador, mas não no campo esportivo. A passagem pelo Espinho, o time da cidade da família, foi das mais difíceis. Durante o período, seu pai passou a lutar contra um câncer e morreu cinco anos antes de o filho conquistar o título português pelo Porto, clube que ambos compartilhavam a paixão.

No início, as frustrações em campo se repetiam. Ainda no Espinho, por duas temporadas seguidas, ele ficou na segunda posição e esteve longe do primeiro troféu. Depois, no Santa Clara, uma decepção ainda maior. Na última partida, o time venceu o jogo que definiria a promoção à divisão acima. Torcedores invadiram o gramado e faziam festa na arquibancada. Mas, em pouco tempo, o silêncio tomou conta.

No outro jogo da rodada, o União Leiria, concorrente pela vaga, marcou um gol nos minutos finais e garantiu o acesso, acabando com o sonho do Espinho. "Por vezes, é preciso perder primeiro para depois fazer coisas grandes", disse o católico e devoto de Nossa Senhora (padroeira do Brasil) profeticamente à época, em entrevista ao site Mais Futebol.

A pressão intensa do futebol brasileiro não é novidade na sua carreira. Os anos no Porto fizeram com que se mudasse para a Arábia Saudita, pensando na sua família e visando um ambiente mais tranquilo e menos exigente. As experiências ao comandar Fenerbahçe, na Turquia, e Olympiacos, da Grécia, dois locais em que os torcedores são conhecidos pelo fanatismo, também não foram fáceis.

"Falaram aqui no Brasil que ele não sabe o que é dérbi. Na Grécia, ele passou por situações complicadas duas vezes. No clássico com o Panathinaikos, ele foi ao gramado fazer o reconhecimento, ver o campo e entrar na pequena área. Era só a torcida rival presente, e os gregos falavam para ele não entrar lá. Mas ele foi e ficou muito perto da torcida rival e, então, invadiram. Deu bomba, briga e depois nem jogo teve por causa disso", conta Salino.

Vítor é muito autocrítico e perfeccionista, além de ser conhecido por ter "sangue quente". A personalidade forte é capaz de, por vezes, gerar atritos. O técnico do Corinthians se considera um pouco obsessivo por futebol e já disse ter dificuldade para se "desligar", embora goste da tranquilidade nos tempos que passe com a família. A cabeça trabalha sistematicamente. Procura sempre estar com um bloquinho em mãos – e, se precisar, até guardanapo – para fazer anotações táticas.

O maior erro da carreira foi ir para a segunda divisão da Alemanha com o objetivo de tentar evitar o rebaixamento do Munique 1860 à terceira divisão. Um nível técnico aquém e um estilo de jogo mais físico e de menos bola no chão, características que o português não vislumbra em sua visão de futebol. A missão fracassou.

O sonho de Vítor Pereira é conquistar a Liga dos Campeões. O técnico português já negociou para treinar no futebol inglês, um de seus objetivos na carreira, mas o acerto nunca aconteceu. Ele chegou a fazer estágio no Bayern de Munique e até deu conselhos para o técnico Pep Guardiola. A equipe alemã havia sido eliminada pelo Real Madrid da Liga dos Campeões e o treinador espanhol tentava encontrar soluções para os problemas do time na partida decisiva.

"Eu disse-lhe exatamente o que penso: Pep, em determinados jogos, continuas a expor a tua linha defensiva no momento da transição. Está a acontecer-te isto, isto e isto. Esta é a minha opinião, se quiseres, reflete . Ele concordou e respondeu: Tens razão. Já percebi isso. Mas ando à procura de um exercício que me permita resolver o problema. Eu disse-lhe: Vou dar-te uma sugestão. Se aceitares, está aqui. É assim. E dei-lhe um exercício. Resulta de certeza absoluta, expliquei-lhe. Nunca tinha pensado nisso, disse o Pep ", contou Vítor Pereira ao jornal português Record, compartilhando que, no dia seguinte, o treinador espanhol adaptou sua ideia no treino do time alemão.

O estudo aprofundado das táticas do jogo é uma das qualidades do técnico do Corinthians, como conta Salino. "Ele entrega tudo mastigado para os jogadores. Quando você vê, tudo que ele falou antes da partida realmente aconteceu em campo. Taticamente, ele é muito bom, realmente diferenciado".

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