O artista sul-africano William Kentridge, já bem conhecido no Brasil por sua exposição Fortuna (realizada há um ano na Pinacoteca do Estado), revela em Seis Lições de Desenho, DVD duplo lançado pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que, além de bom desenhista, cineasta e diretor de teatro, é também excelente performer. Numa série de conferências realizadas há dois anos para o Charles Eliot Norton Professorship da Harvard University, em Cambridge, Kentridge não ensina propriamente a desenhar, mas revela o suficiente sobre seu método de trabalho, que não é o de reproduzir a realidade aparente, como pode sugerir sua linguagem figurativa. Antes de tudo, são aulas de pura filosofia retórica, que prendem a atenção do espectador pela dinâmica comunicação desse divertido Entertainer.
Não contente em ser um dos grandes artistas visuais contemporâneos, Kentridge criou um doppelgänger para seguir seus passos e criticá-lo, antes que os profissionais da área o façam. É muito engraçada a sequência em que Kentridge, ao desenhar um rinoceronte, vira alvo do seu duplo debochado, como se ele fosse incapaz de reproduzir o bicho como Albrecht Dürer o fez numa popular xilogravura do século 16. Cabe ao espectador a delícia de absorver referências como essa à história da arte sem ter de enfrentar um velho acadêmico, mas um artista envolvido com sua época. Um criador cuja linguagem, ainda que cifrada e alegórica, traduz os grandes dramas políticos e sociais de seu lugar de origem, um país que só há 20 anos, com o fim do apartheid, elegeu o primeiro presidente sul-africano negro, Nelson Mandela.
Seis Lições de Desenho começa com uma conferência de pouco mais de uma hora de duração, Elogio das Sombras, espécie de introdução ao pensamento gráfico de Kentridge, conhecido por seus desenhos a carvão que formam sequências cinéticas típicas da animação. A primeira delas mostra uma parada de bonecos recortados, silhuetas que desfilam na tela com cestos, armas e crianças, acompanhados por uma triste melodia ao acordeão, fragmentos de seu filme Shadow Procession (1999). A obra em questão evoca exílio e genocídio, realidade conhecida por quem viveu anos sob um regime racista e autocrático como o da antiga África do Sul.
Em Elogio das Sombras, como o próprio título sugere, Kentridge retrocede séculos até a alegoria da caverna descrita na República de Platão para traçar uma analogia entre os prisioneiros platônicos que só enxergam sombras nas paredes e os espectadores que, libertos de seu condicionamento visual, podem captar as nuances sutis do desenho contemporâneo. Kentridge admite que, ao conceber o filme, não via a mínima possibilidade de que essa parada de bonecos terminasse como “uma festa galante na ilha de Cítera, a exemplo de Watteau”. Essas tristes silhuetas se movem em direção a um lugar indeterminado, num tempo indefinido. Ou, como afirma a ensaísta Lilian Tone num extra do DVD, os desenhos filmados e os filmes desenhados de Kentridge “existem num curioso estado de transição não realizada entre a materialidade estática e a animação temporal”, aparência típica da técnica caseira de animação, que Kentridge descreve como “cinema da idade da pedra”.
De fato, é rudimentar, mas ao mesmo tempo extraordinária, a técnica que faz com que o simples desenho de um cavalo sofra tantas variações no primeiro dos dois vídeos – uma das sequências mais sublimes de Seis Lições de Desenho, cada uma delas partindo de uma obra do artista, que compara seu ofício ao de um filósofo. O desenhista, a exemplo de Platão, liberta seus camaradas da caverna e os obriga a olhar para a luz. Mas, ao contrário do filósofo, ele não quer ter a palavra final ou almeja o papel de juiz supremo, justificando, assim, o ilusionismo de seus filmes caseiros. É no limiar entre o objeto e sua representação que a imagem emerge, lembra Kentridge.
O artista, nascido em Johannesburgo há 59 anos, é assumidamente um defensor da arte comprometida com a política. A despeito disso, não faz panfletos nem manifestos. Os vídeos mostram um criador silencioso, que busca em seu ateliê as respostas que outros buscam nas ruas, acreditando mais na descoberta que na invenção.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.