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Pouco celebrado, Roy Andersson vence do Leão de Ouro

A reação ao Leão de Ouro concedido ao filme sueco A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existence foi tépida. Os grandes jornais, como Corriere della Sera e La Repubblica, deram a notícia de forma objetiva, da mesma forma que o local Gazzettino di Venezia. Nenhuma contestação, mas nenhuma euforia. Apenas um registro curioso – foi a primeira vez que um sueco levou o Leão de Ouro, o prêmio cobiçado do mais antigo festival de cinema do mundo. Nem Bergman tinha esse troféu. Todos também registraram a fala de agradecimento do diretor Roy Andersson, afirmando que, se não fossem Vittorio de Sica e seu clássico Ladrões de Bicicleta, ele não teria se tornado cineasta. “É minha fonte permanente de inspiração”, disse Andersson, em afirmação surpreendente, dada a diferença radical entre o seu filme e esse clássico do neorrealismo realizado em 1948, no duro pós-guerra europeu.

Bem, há que pesar declarações. Se as linguagens cinematográficas parecem muito diversas, a matriz humanista talvez de fato seja semelhante. De Sica preocupava-se com o desemprego e a crise econômica em um país devastado pela guerra. Mostrava, através do humilde trabalhador vivido por Vittorio Maggiorano, como o simples furto de seu instrumento de trabalho – a tal bicicleta do título – podia se transformar em questão de vida ou morte. A ponto de o desespero levá-lo a tentar cometer o mesmo delito de que fora vítima.

Quase 70 anos se passaram desde que o neorrealismo surgiu na Itália como movimento renovador do cinema mundial (entre outros, o Cinema Novo brasileiro nasce sob sua influência). Outro é o cinema, outra é a Europa, que, no entanto, ainda sente a crise econômica de 2008. Essa sensibilidade ao que podemos chamar da desumanização do homem, une, no entanto, dois filmes tão distintos e tão separados no tempo. Em De Sica as imagens são calorosas, intensas em seu preto e branco. Em Andersson, o colorido é pálido, os 39 planos sequências parecem formar quadros estáticos, mas, neles, muita coisa acontece.

Assim como Maggiorano e seu filho (vivido pelo menino Enzo Staiola) se deslocam por uma Roma tornada progressivamente irreal em busca da bicicleta perdida, os dois protagonistas de Andersson, Sam e Jonathan, põem o pé na estrada para vender produtos “destinados a alegrar as pessoas”. Nada é mais comovente que um palhaço triste e é desse modo que podemos ver esses personagens. Anunciam produtos patéticos como um saco de risadas (“O nosso clássico”, diz um deles), dentes de vampiro e uma máscara “do homem com um dente só”. Fazem a propaganda dos produtos sem esboçarem um mínimo sorriso.

Nessa trajetória, acontecem coisas como o marido que sofre um enfarte ao abrir uma garrafa de vinho enquanto a esposa cozinha ao lado; a moribunda que se agarra a uma bolsa de joias, enquanto o filho tenta convencê-la de que no céus ela encontrará outro tipo de joia; o homem que morre numa lanchonete depois de haver pedido e pago uma cerveja e o sanduíche, com a garçonete perguntando aos outros clientes se desejam aproveitar esse lanche grátis. Humor negro. Ironia e distanciamento crítico – eis as chaves desse “Pombo Sueco”, como o batizou a imprensa italiana para resumir o título longo demais.

Gratuita é a morte, a esperança, e sem sentido parecem os relacionamentos, numa estética que lembra, visualmente, Hopper e Brueghel, e, conceitualmente, o universo de Ionesco. Mas Sam e Jonathan se parecem também a Dom Quixote e Sancho Pança, os personagens de Cervantes que percorrem um mundo em desajuste. Enfim, é um belo filme e há que se pensar sobre ele. Talvez não desperte entusiasmo ou catarse, porque é inscrito em tom menor. Mas seu rigor de concepção, a inteligência da escrita e da direção tornam justo este Leão de Ouro.

Que, diga-se, poderia ter ido para outras mãos sem qualquer problema. O Leão de Prata (melhor direção) para Andrei Konchalovski consagra seu belo trabalho com The Postmans White Nights (As Noites em Claro do Carteiro), uma imersão na Rússia rural, interpretado por seus próprios habitantes. Documentário? Ficção? Em certos casos, essa distinção já não se coloca. Este sim é um filme que poderia ter despertado entusiasmo maior caso tivesse vencido o festival.

Outro dos favoritos, The Look of Silence, de Joshua Oppenheimer, foi o preferido dos críticos presentes em Veneza. Impactou a todos com sua descida aos infernos do genocídio na Indonésia durante a ditadura de Suharto.

Oppenheimer dirige, mas quem entrevista quem praticou os crimes é um indonésio que não se identifica por medo de represálias. Boa parte da equipe permanece no anonimato.

Enfim, houve em Veneza uma mostra diversificada em termos de linguagem cinematográfica e temática, embora tenham prevalecido filmes que falavam dos males do mundo. De uma forma ou de outra, o cinema autoral reflete o mal-estar das sociedades contemporâneas, mesmo das mais desenvolvidas. Mesmo fora de concurso, as obras empenhadas foram destaque. A aparentemente insolúvel questão italiana com a máfia apareceu no concorrente Almas Negras, mas também nos documentários Beluscone – Uma História Siciliana e A Tratativa. Filmes que expõem o relacionamento bastante promíscuo entre o Estado e o crime organizado. Repercutiram muito por aqui. Até mais do que alguns premiados.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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