Antes mesmo de falar do próprio filme, Tudo por Amor ao Cinema, Aurélio Michiles, como pai coruja, fala do filho: “Ele está na seleção do Festival Latino de São Paulo. O André fez Através com dois amigos, Fábio Bardella e Diogo Martins. É um road movie que se passa em Cuba, um filme muito interessante que vê as mudanças da ilha pelo olhar de uma cubana.” E Aurélio adverte: “Não perca que vai valer a pena.” Agora é o repórter quem diz: não perca Tudo por Amor ao Cinema. Também vai valer (muito) a pena. O novo documentário de Aurélio Michiles centra-se na figura de Cosme Alves Netto (1937-1996).
O cinéfilo sabe, o cinéfilo conhece. Foi o diretor da Cinemateca do MAM, o Museu de Arte Moderna do Rio. Um grande agitador cultural. Com seu resgate da memória do cinema brasileiro e mundial, ajudou a fazer mais de uma geração de cinéfilos. Mas essa era apenas uma – a mais evidente – faceta da sua persona. “O Cosme fez a resistência ao regime militar. Teve ligação com a guerrilha e chegou a ser preso e torturado. E ele amava as mulheres tanto quanto foi amado por elas. Um dia, para a realização do documentário, reuni as mulheres do Cosme. Todas trouxeram seus álbuns de fotos e as histórias. Foi maravilhoso.”
Aurélio Michiles dirigiu O Cineasta da Selva, um docudrama, mistura de documentário e ficção, que resgata o pioneiro Silvino Simões dos Santos. O que Michiles, Silvino Simões e Cosme Alves Netto têm em comum? O Amazonas. Silvino foi um português que, radicado no Brasil, e no Norte, deixou registros importantíssimos da selva. Michiles é amazonense, como Cosme. E, antes de se interessar por ele, já era um apaixonado por Cosme Ferreira Filho. Deputado constituinte, o pai de Cosme Alves Netto foi um pensador do Brasil, e da Amazônia. Numa época em que as elites só pensavam em tirar o máximo da cultura extrativista, ele, como empresário, já defendia que o futuro estava no controle ambiental e na transformação do extrativismo numa cultura industrial. Era um visionário. O filho, que trabalhou com ele, era louco por cinema.
Cosme já estava no MAM quando, em 1981, Michiles foi filmar uma tribo de índios que, no interior do Amazonas, fazia o que o pai do diretor da cinemateca do museu defendia. Os índios haviam elaborado uma forma de colher e processar o guaraná. E foi lá, no meio da selva, que Michiles ouviu, na Voz do Brasil, que Glauber Rocha havia morrido. Quase surtou. Os índios pensaram que ele havia perdido o pai – o pai do cinema brasileiro, como Eryk Rocha definiu Glauber na entrevista ao Estado. Nasceu ali, daquela angústia, a decisão de fazer um vídeo sobre Glauber. Uma carta de amor ao cineasta (e ao cinema). Cosme viu, e enviou uma mensagem a Michiles, saudando o nascimento de um cineasta amazonense. Quis conhecê-lo. Foi assim que começou a aproximação.
O filme nasceu de outra fonte – Rudá de Andrade, que morava em frente à casa de Michiles, em Higienópolis, e Thomas Farkas lhe cobravam que fizesse um filme sobre Cosme, morto em 1996. “Contavam-me histórias. Cosme guerreiro do cinema brasileiro, Cosme que fez a ponte entre Brasil e Cuba numa época em que os dois países não tinham relações oficiais.” Rudá e Thomas morreram antes que Michiles gravasse seus depoimentos, mas foram tão importantes que o diretor dedica seu filme a eles. Tudo por Amor ao Cinema tinha quatro horas, que Michiles reduziu a 97 minutos. Você vai conhecer um personagem raro. E os filmes que ele amava. Filmes díspares – O Encouraçado Potemkin, Cantando na Chuva, As Cantoras do Rádio. Cosme era da estirpe de Paulo Emílio Salles Gomes. Esses homens amavam o Brasil. E tudo o que fizeram foi por amor ao cinema. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.