Variedades

Mostra de Elisa Bracher presta homenagem à mãe da artista

Muito já se falou do expurgo da morte do convívio contemporâneo, mas esse aviso parece não surtir efeito entre os modernos. Vivemos numa sociedade hedonista, que faz da morte um tabu, como já disseram o historiador francês Phillipe Ariès (1914-1984) e o antropólogo inglês Geoffrey Gorer (1905-1985). Vez ou outra surge uma figura iluminada, como a escultora Elisa Bracher, 50, para lembrar que a ocultação da morte e a extinção do luto em nada contribuem para a compreensão do fenômeno. O banimento da morte na sociedade moderna provoca apenas uma repressão mórbida com graves consequências para os indivíduos – e, naturalmente, a sociedade.

Morre-se, hoje, no hospital, não em casa. A cerimônia fúnebre é rápida. O luto, mais veloz ainda. Todos querem se livrar das formalidades – e do defunto. Ninguém mais visita túmulos (a possível exceção talvez seja a garotada gótica). Assim, a exposição Luctus Lutum, de Elisa Bracher, que será aberta neste sábado, 22, na Galeria Raquel Arnaud, representa ao mesmo tempo uma cerimônia pública, organizada, para homenagear a mãe de Elisa, morta em março, como o estabelecimento de um novo marco na trajetória de uma artista ousada, conhecida por suas grandes esculturas de toras de madeira instaladas em parques da cidade (Ibirapuera, Jardim da Luz).

Com curadoria de Elisa Byington, socióloga e historiadora de arte, a exposição Luctus Lutum, como indica o título em latim, faz da junção lodo e luto um jogo de palavras com correspondência no mundo concreto – o lodo como elemento do princípio vital, bíblico (o barro) e o luto como fim desse processo. Sua representação visual vem na forma de um labirinto construído de taipa de pilão, que ocupa todo o andar térreo da galeria. Impossível de ser decodificado sem ser penetrado, o labirinto desorganiza o espaço real e desorienta quem está fora.

Para verificar se é uma construção ou demolição, o espectador tem obrigatoriamente de percorrer esses corredores como, nos tempos remotos, faziam os iniciados no culto às deusas agrícolas Deméter e Perséfone, ao seguir ritos de iniciação para conhecer os mistérios de Elêusis. Pode ser que uma revelação teofânica – ou hierofânica – aguarde o visitante no fim do percurso. O mito da morte e da ressurreição, afinal, não se encerra no simbólico grão de trigo de Elêusis, que morre e renasce das entranhas da terra.

O uso da taipa de pilão por Elisa Bracher, revela a artista, é naturalmente associado a essa sociedade agrária, arcaica, que a modernidade urbana substituiu pelo cinismo e a falsa felicidade forjada pelo mundo industrializado. “É uma técnica que vi aplicada em silos para guardar grãos em Descalvado, que visitava quando criança”, conta. Na pequena cidade do interior de São Paulo, conhecida por suas fazendas centenárias, a artista desenvolveu uma sensibilidade particular, que lhe abriu as portas da percepção de uma nova realidade espacial.

Primeiro foram os troncos de madeira, dos quais ela extraía as cascas, regularizando as toras com serras. Essas esculturas, no limite da instabilidade, permitem ao espectador buscar o equilíbrio perdido à medida que circula ao redor delas, como observou o crítico Rodrigo Naves. No labirinto de Luctus Lutum, segundo a curadora da mostra, “o caminho sinuoso leva a uma reconfiguração do espaço sem ser impositivo, ao contrário das esculturas penetráveis do minimalista Richard Serra”. Elisa Bracher, que gosta de Serra, diz que as diferenças são de ordem cultural – e material, claro, sendo o sistema rudimentar e arcaico de construir paredes com taipa de pilão nossa herança colonial portuguesa.

“Resgatar uma técnica como essa é repensar também o espaço urbano, numa cidade onde quase nada é público”, justifica a artista, que mantém, desde 1997, o instituto Acaia, uma organização social sem fins lucrativos, na Vila Leopoldina, onde 300 crianças e adolescentes de conjuntos habitacionais populares aprendem desde marcenaria até música e artes visuais. Com eles, Elisa Bracher vai construir, ao lado da biblioteca do Parque Villa-Lobos, um monumento de taipa.

Na exposição Luctus Lutum, além do labirinto de taipa in situ, a artista mostra, no segundo andar da galeria, desenhos, uma escultura (Pulmão) e fotografias pinhole (em câmera escura, registradas sem lente) durante uma residência artística num navio do Círculo Polar Ártico, em 2014. A escultura é feita de material nunca antes utilizado por Elisa Bracher: plástico. Obra premonitória, que antecipou o diagnóstico da mãe, esse “pulmão”, formado por dois quadrados de plástico, infláveis e interconectados, é mesmo uma metáfora do corpo numa sociedade materialista que acredita mais na máquina (o pulmão é mantido por uma engenhoca mecânica) que na transcendência física. Em tempo: a mãe da artista, a educadora Sônia Maria Sawaya Botelho Bracher, morreu em março, aos 78 anos, de câncer pulmonar.

Para acompanhar a mostra de Elisa Bracher, o jovem compositor paulistano Rodrigo Felicissimo compôs Campo dos Sinos, delicado poema sinfônico que traça uma correspondência musical com as fotografias feitas pela artista no Ártico. Ele criou a peça com o método desenvolvido pelo compositor Heitor Villa-Lobos para transpor musicalmente a sinuosidade das montanhas do Brasil – Villa usava papel milimetrado para “interpretar” a paisagem como uma partitura. Em sua Sexta Sinfonia, também chamada Sobre as Linhas das Montanhas (1944), ele faz esse exercício analógico entre imagem e melodia. Multidisciplinar, Elisa Bracher cria agora esculturas para um filme que Julia Murat começa a rodar em setembro, a turbulenta relação entre um escultor e uma bailarina. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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