Felizmente, os agostos continuam trazendo o Grupo Corpo a São Paulo. Quem acompanha o seu percurso sabe que suas estreias ocorrem a cada dois anos. Assim, o programa que apresentam até este domingo, 14, no Teatro Alfa, junta a criação mais recente de Rodrigo Pederneiras, que celebrou os 40 anos da companhia, Dança Sinfônica (2015) e Lecuona (2004), há muito ausente dos palcos.
O fato de estarem hoje separadas por 12 anos expõe uma questão instigante, que diz respeito não somente ao Grupo Corpo, e sobre a qual vale refletir. Que uma obra que é criada para um certo elenco se transforma quando passa a ser dançada por outro, é do conhecimento geral. Dos 12 casais do primeiro Lecuona, eternizado no DVD, permaneceram apenas dois bailarinos (Edson Hayzer e Helbert Pimenta) e duas bailarinas (Janaína Castro e Silvia Gaspar). Todavia, não se trata do que permanece, mas justamente do que não pode permanecer.
Nesse intervalo, o corpo humano ganhou uma proeminência jamais vista, sendo transformado, ao mesmo tempo, em uma senha de acesso e um critério de discriminação. Ganhou uma forma bem definida, tiranizada em uma linha de corte a dividir o mundo entre os eternamente jovens, fortes e saudáveis (adjetivos que se tornaram sinônimos) e os outros. O que desenha agora esse corpo tem muito mais tônus, volume e ênfases em grupos musculares que precisam ser visíveis.
Quem dança profissionalmente hoje em companhia, vive no mundo regido por esse modelo de corpo – e isso não se refere, é claro, apenas aos afinados e mais que competentes bailarinos dessa companhia, que se distingue pelo rigor e pela excelência do que faz. Só para lembrar de um dos traços recentes, vale observar o que a presença do hip-hop promoveu na dança cênica, em todo o mundo. E ainda há que se considerar as tantas outras possibilidades que foram agregadas ao treinamento de um bailarino (pilates, ioga, variadas artes marciais, etc.), para além das técnicas “puras”, que tiveram a sua vigência até o século 20.
O Lecuona que agora existe é uma aula importante sobre essa questão. Nos conduz para uma leitura do presente da dança (aliás, uma das funções da arte) quando nos faz, de um golpe só, identificar as profundas transformações ocorridas e a admirar o equilíbrio delas com o que fica. Curiosidade alerta em vez de nostalgia.
E como assistimos a este Lecuona acompanhado de Dança Sinfônica, a reflexão se amplia também para a dilatação dos entendimentos sobre elegância. Porque a sutileza das escolhas de Freusa Zechmeister para os figurinos dessa obra, manifestadas na sabedoria de cada corte, textura e cor, conversam com os volumes leves e esgarçantes dos vestidos de Lecuona, que precisam continuar a riscar o espaço, espalhando o que não pode ser contido.
Rever Dança Sinfônica no ano seguinte ao da sua estreia também nos ensina algo precioso. Silvia Gaspar agora tempera os dois mais que emocionantes pas de deux (dançados com os impecáveis Edmárcio Júnior e Helbert Pimenta) com ajustes antes impensáveis entre abandono e prontidão. Fica mais explícita a sua ligação com os golpes das cabeças, que abrem os espaços para trás para ocupá-los com o que vem depois. Antes e depois, morte e vida, história e futuro: essa é a sinfonia que a maturidade de Rodrigo Pederneiras pôs para dançar.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.