Variedades

Mais forte que a ficção

Estamos na última semana de 2013. O desconhecido aspirante a escritor Jessé da Silva Dantas, cria da favela de Antares, 32 anos e ensino médio incompleto, chega para uma reunião com Roberto Feith, então diretor-geral da editora Objetiva. Ele está ansioso – os originais de seu livro, Fiel, já haviam sido ignorados por outros editores. Feith lhe conta a seguinte história: anos antes, equivocadamente, havia rejeitado a publicação de um livro infanto-juvenil trazido da Inglaterra sobre uma certa escola de bruxaria. Nunca deixaria de se arrepender ao testemunhar o estrondo que causou ao sair pela concorrência. Ele deixara passar o primeiro título da série Harry Potter.

“Jessé, eu não quero que seu livro seja o próximo Harry Potter da minha vida. Vamos assinar contrato?”, Feith disse, para espanto e excitação do interlocutor. Fiel havia sido escrito por dois anos num Blackberry, no sacolejar do trem lotado que ele pegava diariamente. As três horas que “perdia” nos deslocamentos para o trabalho e para casa se provavam um tremendo ganho. Até então, entrava em livrarias e pensava: “Como um dia uma editora vai publicar um livro meu? E se publicar, por que alguém vai escolhê-lo numa prateleira, diante de tantos escritores renomados?”, relembra.

Hoje, continua longe de ser uma J. K. Rowling, mas o codinome que assumiu, Jessé Andarilho, corre o Brasil. Seja nas palestras sobre sua trajetória que dá em escolas, presídios e empresas, seja nos saraus de poesia que realiza há dois anos em bairros periféricos do Rio. Batizados de TáNo Ponto, por acontecer perto de pontos de ônibus, eles apresentam a um público super interessado leituras, recitações, grafite e outras expressões artísticas marginalizadas.

O mesmo Blackberry de Andarilho, que agora o usa para escrever, serviu a seu segundo livro. Efetivo Variável está sendo lançado pela editora por seu prestigioso selo Alfaguara. O processo de trabalho se repetiu: do telefone ele passou o texto a limpo num caderno, para só mais tarde se sentar ao computador.

Em Fiel – que em breve vai virar filme -, o personagem central é o adolescente Felipe, que, num golpe do destino, entra para o tráfico da favela e, por causa de sua sagacidade, acaba chegando ao topo da hierarquia dos bandidos. Efetivo Variável traz o recruta Vinicius narrando em primeira pessoa suas desventuras no quartel, no qual se depara com as humilhações dos superiores e as dificuldades de adequação às normas militares.

Antares, com todas as dores e as delícias da vida de uma comunidade pobre carioca, está nas duas narrativas, assim como características pessoais que o autor emprestou aos protagonistas: a sociabilidade, a disposição para o trabalho, a determinação em tudo o que faz. O amor fogoso dos hormônios em brasa, a falta de perspectiva decorrente da baixa escolaridade, a tumultuada relação com pai e mãe, o desejo de liberdade e a cumplicidade com os amigos são traços juvenis que atravessam os livros.

Ele romanceia o que viveu ou o que ouviu de fonte primária. Fiel tinha toda a sua vivência em Antares, favela há muitos anos conflagrada. Para Efetivo Variável, lançou mão das lembranças de quando serviu no Batalhão Escola de Engenharia do Exército, aos 19 anos – como Vinicius.

“Quando comecei a escrever, achava que não conseguiria despertar o interesse de um público que já era leitor e tinha suas preferências. Então quis criar um novo mercado”, explica. “Escrevo para gente que não gosta de ler, e ganho de presente quem gosta. No trem, você não vê ninguém lendo. As pessoas não se sentem representadas na literatura”.
Fala por experiência própria: o interesse pela leitura e escrita começou com No coração do comando, do mentor Julio Ludemir, que se passa em favelas. “No primeiro parágrafo já tinha um palavrão. Eu nem sabia que podia ter palavrão em livro”, brinca.

“Para captar esses novos leitores, tem que estar próximo deles. É como no cinema: Cidade de Deus e Tropa de Elite fizeram sucesso por quê?” provoca Jessé, filho de um vendedor de cuscuz e uma vendedora de sonhos, e que hoje vive fora da favela, em Campo Grande, zona oeste.

O Andarilho fala da e para a juventude com propriedade em suas viagens pelo Brasil. Descreve sua trajetória, do aluno medíocre, que não entrou para o tráfico para não dar desgosto à mãe, apesar da possibilidade do dinheiro fácil, e que foi técnico de celular (aprendeu fazendo), dono de lan house, produtor, roteirista de TV e operador de áudio até ser publicado por uma das maiores editoras do País. Hoje, é convidado para falar na Universidade de Sorbonne, em Paris, e na Feira do Livro de Bolonha, na Itália.

“Eu vendo o personagem Jessé Andarilho, porque eu sei que livro não vende tanto. O que os estrangeiros querem conhecer do Brasil? As histórias novas”, defende. “No Brasil, eu vou a escolas e pergunto: quem aqui gosta de poesia? E todo mundo diz que não. Aí ponho vídeos de pessoas como Rincon Sapiência, Emicida, Mano Brown recitando e todo mundo adora. É a ideia de trazer da margem para o centro, para o now”, relata, fazendo alusão ao movimento que criou e nomeou de Marginow. “Na periferia a gente pode fazer o que quiser, que as pessoas sempre vão rotular de um jeito que diminua. Se é teatro, é amador. Se é funk, é proibidão. Se é literatura, é marginal. Podem me chamar do que quiser, só não deixem de me chamar, porque aí eu invado.”

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